Quem é francês de verdade?
A língua francesa é justamente renomada por sua clareza e precisão. Contudo, em um assunto aparentemente tão simples, seus falantes não conseguem se entender – quem e o que pode ser definido como francês? A questão se renovou após os assassinatos de Toulouse. Ninguém duvida de que o culpado seja Mohammed Merah, de 23 anos, um jovem de ascendência argelina nascido na França. Mas Merah era francês de verdade?
Segundo quatro membros do parlamento que pertencem ao partido de centro-direita do presidente Nicolas Sarkozy, isso é impossível. Em uma declaração conjunta, eles insistiram que Merah "não tinha nada francês além de seus documentos de identidade".
"Bobagem", retrucou o jornal de esquerda Libération: "Merah certamente era um monstro, mas ele era um monstro francês". Um amigo de infância de Merah explicou de forma comovente: "Nossos passaportes podem dizer que somos franceses, mas não nos sentimos franceses porque nunca fomos aceitos aqui. Ninguém pode justificar o que ele fez, mas ele é um produto da sociedade francesa, do sentimento de quem não tem esperanças, nem nada a perder. Não foi a al-Qaeda que criou Mohammed Merah. Foi a França".
Esses diferentes conceitos sobre o significado de ser francês – um deles baseado em um ideal intransigente de assimilação e o outro nas realidades bagunçadas do multiculturalismo – me tocaram profundamente. Quando estava pesquisando um livro sobre políticas de diversidade com minha esposa, Shareen Blair Brysac, encontrei não apenas a atitude de exclusão predominante nas áreas metropolitanas de Paris, mas também uma visão de mundo mais tolerante, simbolizada pelo porto da cidade de Marselha – uma visão de mundo que seria benéfica para a França toda.
Para os excludentes, o teste de "francesidade" é simples: Você já abandonou
qualquer outra identidade que um dia teve? Conforme dito pelo presidente Sarkozy
em 2011: "Se você vem à França, você aceita se misturar a uma única comunidade,
a comunidade nacional. Se você não estiver disposto a aceitar isso, você não é
bem vindo à França. Nós estivemos muito preocupados com a identidade daqueles
que chegavam, mas não com a identidade do país que os estava recebendo".
Esse é um problema antigo. Desde o tempo dos jacobinos, até a Quinta
República, os legisladores sempre discordaram a respeito de se a nacionalidade
deveria ser determinada pelo nascimento, pela ascendência, pelo tempo de
residência ou pela assimilação. O acadêmico francês Patrick Weil destacou que a
França mudou suas leis de nacionalidade "com maior frequência e de forma mais
profunda do que qualquer outra nação democrática".
De que forma uma pessoa se torna cidadão na França dos excludentes?
Conhecendo suas referências culturais e as complexas características de seu
povo, conforme descrito em 1969 pelo escritor Sanche de Gramont: "O francês não
é uma pessoa que possui um passaporte azul marinho e fala a língua de Descartes,
mas uma pessoa que sabe quem quebrou o vaso de Soissons, o que aconteceu com o
burro de Buridan, porque existe um prato chamado Parmentier e porque Carlos
Martel salvou o cristianismo". (Ironicamente, em 1977, de Gramont mudou seu nome
para Ted Morgan e se tornou cidadão dos Estados Unidos).
Os efeitos dessa mentalidade excludente são palpáveis. Atualmente, a França
conta com a maior população de minoria islâmica da Europa, que responde por 10
por cento de sua população. Ainda assim, os muçulmanos continuam a ser um povo
segregado, conforme ficou documentado em 2011 por uma equipe de pesquisadores
recrutada pelo Open Society Institute. "Na França", resumiu um dos
pesquisadores, "você pode ter qualquer ascendência, mas, se você for cidadão
francês, você não pode ser árabe". Ele acrescentou que identidades compostas
como "franco-árabe" são "ideologicamente impossíveis".
Essa é a razão para o contraste que se vivencia em Marselha, a segunda maior
cidade da França. De seus 840.000 habitantes, quase 240.000 são muçulmanos (mais
do que em qualquer cidade europeia). Entretanto, ela é famosa por sua
receptividade. Aqui, segundo nos contou Jean Roatta, um político que representa
o abastado distrito central da zona portuária, "você é marselhês antes de ser
francês". Durante o outono de 2005, quando os confrontos que consumiram os
subúrbios parisienses e se espalharam para outras cidades e vilarejos, a paz
reinou sobre Marselha. A cidade ainda está longe de ser um paraíso multicultural
(muçulmanos desempregados afirmam sofrer com a discriminação), mas essa segunda
cidade ainda aponta para a direção correta com sua civilidade receptiva.
Por que? Sem sombra de dúvidas, as temperaturas agradáveis e as praias
abundantes ajudam a manter uma atmosfera de tranquilidade, mas a principal razão
é que a cidade atrai imigrantes há séculos. E suas minorias não são divididas
geograficamente em guetos nos subúrbios, mas são integradas ao dia a dia de
Marselha. Tão importante quanto isso é o fato de que diversos prefeitos romperam
com as regras para fornecer benefícios especiais de trabalho, de moradia e
vantagens políticas para os recém-chegados. Além disso, existe o efeito positivo
de seu produto cultural mais típico, o rap; e o poder unificador do popular time
de futebol da cidade, o Olympique de Marseille, que conta com muitos jogadores
de origem africana. O rap chegou à França nos anos 1980 e os jovens imigrantes
de Marselha deram vazão a sua melancolia e a sua frustração em versos salpicados
com as gírias da cidade.
O espírito marselhês de tolerância civilizada pode e deve se espalhar para o
resto do país? Minha esposa e eu nos lembramos da multidão de voluntários que
partiu de uma Marselha poliglota, marchando em direção a Paris enquanto cantava
a melodia que deu à França o seu hino nacional: A Marselhesa. Ninguém perguntou
a eles se sabiam o que havia acontecido com o burro de Buridan.
(Karl E. Meyer foi membro do conselho editorial do The New York Times e é
coautor do livro "Pax Ethnica: Where and How Diversity Succeeds" – Pax Ethnica:
Quando e como ocorre a diversidade cultural, inédito no Brasil.)
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Osvaldo Aires Bade Comentários Bem Roubados na "Socialização"
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