INTERNET E A LEI - A derrota (ainda) parcial da ditadura na
internet
Por Filipe Siqueira, 27/02/2012 13:05
Projetos de lei dão poderes de Santa
Inquisição para instauração de censura absoluta na internet. E o perigo ainda
não passou!
Casa Branca se mostrou contrária ao projeto por
reduzir a liberdade de expressão
Nas últimas semanas de janeiro, o mundo viu o nascimento e a
barulhenta morte de mais um capítulo político da guerra contra a pirataria
online: o Stop Online Piracy Act (S.O.P.A. - sigla que no Brasil gerou piadas
óbvias), uma espécie de Solução Final na guerra contra violações de direitos
autorais na internet.
O projeto, de autoria do deputado republicano norte-americano
Lamar Smith, tramitou na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos desde outubro
de 2011 e foi mantido em segredo durante sua elaboração.
Pelo conteúdo, não é difícil saber porquê: em sua concepção
original, o cerne da lei previa a paralisação de serviços de internet que têm
qualquer link ou possível quebra de direitos autorais - e isso inclui vídeos,
fotos, textos e até trechos de códigos. Usuários que insistissem em piratear
poderiam ir pra cadeia sem choro.
A cereja do bolo é que a lei eliminava a necessidade de
processos judiciais de qualquer espécie. Em outras palavras, ela colocaria
corporações no controle indireto da internet - algo similar à clássica
comparação da raposa que protege o galinheiro.
A resposta dos mais poderosos players da internet - Google,
Facebook, Amazon, Yahoo!, Wikipedia, PayPal, Twitter e outros - foi praticamente
unânime: eles consideraram a lei uma forma grave de censura que acabaria com a
liberdade da rede.
Algumas dessas empresas foram além de meramente condenar
publicamente a iniciativa jurídica e paralisaram seus serviços como forma de
protesto.
A Wikipedia liderou a maior manifestação contra a lei e no dia
18 de janeiro substituiu sua homepage por uma página negra com a frase "Imagine
um mundo sem conhecimento livre".
Vários sites aderiram ao protesto - Boing Boing, Reddit,
WordPress, TwitPic e uma multidão de outros - e o resultado foram acusações de
"abuso de poder" por parte da Associação de Cinema dos EUA, a MPAA, que não
ficou muito satisfeita com a força que o movimento conseguiu.
Uma das poucas grandes de internet - a GoDaddy, a maior
empresa de registro de domínio e hospedagem do mundo - a se manifestar a favor
da lei, foi obrigada a voltar atrás na decisão, após mais de 40 mil domínios
serem migrados para serviços concorrentes como forma de protesto.
Mesmo depois de mudar de lado, as migrações em massa
continuaram, pois pelo visto os usuários não querem dar dinheiro para quem apoia
o conjunto da lei.
ATÉ O
OBAMA...
Até a Casa Branca se mostrou contrária ao projeto. Em um
comunicado oficial, afirmou que não apoiará "um projeto de lei que reduz a
liberdade de expressão, amplia os riscos de segurança na computação ou solapa o
dinamismo e inovação da internet global".
Do outro lado do ringue, reuniram-se titãs da indústria do
entretenimento que dependem da manutenção de regras ferrenhas na internet para
combaterem um inimigo cada vez mais forte e manterem os próprios lucros. São
empresas da envergadura da Time Warner, News Corp e Fox.
Colunistas de tecnologia, como Richard Bennett, do New York
Post, argumentaram que a nova legislação busca tirar do ar somente sites que
vendem produtos falsificados, como é o caso dos remédios, mas o buraco
legislativo da lei com certeza seria usado para outros fins e o forte lobby
criado no Congresso americano para que ela fosse aprovada demonstra que essa
opção está correta.
Seja como for, o texto da lei abriu um precedente perigoso e
ditatorial, que tinha o poder de mudar a forma como usamos a internet - que
levaria ao indiciamento do próprio Lamar Smith, que viola direitos autorais ao
usar uma foto protegidas sem autorização em seu site.
ABUSO DE
PODER
Um dos pontos mais controversos da legislação é dar aos
criadores de conteúdo (leia-se estúdios de cinema e gravadoras de música, os
maiores interessados na aprovação) o poder de tirar do ar qualquer site sob
acusação de pirataria sem qualquer tipo de ordem judicial.
Quando o servidor do site estiver fora da jurisdição da lei
americana, o Google seria obrigado a retirar o determinado site das buscas, o
PayPal bloqueará pagamentos ou transações na conta de seus donos (lembra do
WikiLeaks?), entre outras inúmeras possibilidades de sanções das mais
arbitrárias sobre empresas com negócios na internet.
Estaria também sob o poder governamental classificar um site
como infrator, mais uma vez sem a necessidade de instaurar um processo na
Justiça. Após cair nessa lista negra, um site ficaria inacessível para o mundo,
através de tecnologias de bloqueio similares aos utilizados em países como Irã,
China e Arábia Saudita.
Caso entre com um processo, o dono do site teria de enfrentar
uma situação que inverte uma das regras áureas da justiça: provar que não
infringiu qualquer direito autoral, e não seus acusadores.
Para jogar um site nesse inferno virtual basta uma mera "carta
de boa fé" enviada aos provedores. Um estúdio de cinema americano só precisaria
listar numa correspondência que um site qualquer contém um trecho de filme seu e
a envia ao Google, por exemplo.
E isso é tudo! O poder dos provedores era ainda maior: eles
ganham imunidade caso derrubem algum site que considerem infrator. Nesse caso,
até as infames cartas de boa fé seriam absolutamente desnecessárias.
Redes sociais passariam a ser responsáveis por todo o conteúdo
publicado dentro de suas páginas, por exemplo. Se alguém postou um link de
download ilegal do último lançamento dos cinemas no Twitter e o estúdio detentor
dos direitos do filme o vir, o Twitter poderia ser responsabilizado e retirado
do ar. O mesmo vale para o Facebook, LinkedIn e toda e qualquer página da
internet.
EMPINANDO A
P.I.P.A.
Como se não bastasse, correu paralelamente no Senado americano
outra lei com nome gerador de piadas aqui no Brasil: P.I.P.A. (Project IP Act).
O projeto não possuía grandes diferenças em relação ao S.O.P.A. e foi criado
unicamente para aumentar as chances da censura na internet ser desencadeada de
qualquer forma.
É até irônico imaginar que um dos principais alvos do projeto,
o Pirate Bay, não pode ser enquadrado pelo retrocesso legislativo do S.O.P.A. e
nem do P.I.P.A.: todos os parceiros comerciais do site estão fora dos EUA. E o
mesmo vale para a hospedagem, espalhada em diversos pontos do globo.
Obviamente, que algo tão grande e controverso gerou reações
ainda mais fortes por parte do público em geral. Os protestos contra o S.O.P.A.
atingiram seu ápice em 19 de janeiro, quando o FBI fechou o maior site de
compartilhamento da internet, o MegaUpload.
Na mesma operação - ocorrida em em mais oito países, além dos
EUA - foram presos diversos funcionários da empresa, inclusive seu fundador, o
alemão Kim Schmitz. O site foi acusado de ser a ponta de uma rede gigantesca de
pirataria e extorsão que "deu prejuízos de mais de US$ 500 milhões em direitos
autorais".
O grupo de hackers Anonymous saiu da toca onde estava
escondido desde que foi responsabilizado por uma série de quebras graves de
segurança da PlayStation Network e iniciou um protesto próprio contra a lei e a
ação do governo.
Ao utilizar um sistema de ataque chamado DDoS (Distributed
Denial of Service), o grupo, auxiliado por uma multidão de voluntários que se
juntaram de última hora, tirou do ar diversos sites de entidades envolvidas com
a prisão de Schmitz e o apoio ao S.O.P.A.
As páginas do Universal Group, do Departamento de Justiça e do
FBI foram imediatamente retiradas do ar. Sites de senadores dos EUA também foram
alvos fáceis. Até o próprio MegaUpload voltou à vida (desta feita, na Rússia)
com uma mãozinha do Anonymous.
Enquanto o FBI anunciou que responderia à audácia do Anonymous
com mais investigação e prisões, a S.O.P.A. esfriou no cenário político. No
mesmo dia, a Câmara dos Deputados anunciou oficialmente que a votação da lei
havia sido postergada de 25 de janeiro para uma data futura a ser escolhida.
No dia 20 de janeiro, Lamar Smith, pai do S.O.P.A., anunciou
que o projeto não seria votado "até que haja um consenso maior em torno de uma
solução". O P.I.P.A. teve um destino semelhante: estava com a votação marcada
para dia 24 de janeiro, mas foi "adiado indefinidamente".
Algumas poucas horas antes da morte informal dos dois
projetos, a ESA publicou um anúncio constrangedor em que pulava fora do barco de
apoio às duas leis, ao dizer que nem o S.O.P.A. nem o P.I.P.A. eram "devidamente
equilibrados" e como isso contradizia a política da associação de incentivar a
inovação.
Mesmo com o temporário final feliz, o crescimento do poder das
duas propostas de lei mostrou que a liberdade presente na internet deve ser
constantemente reivindicada pelos seus usuários e que o perigo de projetos
desastrados e ditatoriais está sempre à espreita.
Um desses novos projetos é o A.C.T.A. - Acordo Comercial
Anticontrafação -, que já está em sua gestação sigilosa desde outubro de 2007 e
teve alguns de seus artigos e acordos secretos divulgados pelo WikiLeaks.
Os princípios são bem similares ao S.O.P.A.: de
responsabilizar sites com relação a seu conteúdo e dar o poder indireto a
provedores e grandes corporações de tirar essas páginas do ar através de
mecanismos que passam por cima da Justiça. A grande diferença é que o acordo é
mundial.
Além disso, coloca um carimbo comercializável em "qualquer
produto de grande amplitude", o que inclui softwares livres. Em outras palavras:
esses sistemas, mesmo sem caráter comercial, pode ter seu copyright reivindicado
por grandes corporações.
Portanto é bom ficar de olhos abertos, nunca se sabe quando
leis como o S.O.P.A. podem surgir e o perigo voltar à tona.