O escritor, poeta e filósofo G.K. Chesterton dizia
que a família era uma instituição anarquista. Com isso, ele queria dizer
que não é necessário nenhum decreto do estado para que ela venha a
existir. Sua existência flui naturalmente de realidades constantes na
natureza do homem, sua forma sendo aperfeiçoada pelo desenvolvimento de normas
sexuais e pelo avanço da civilização.
Essa observação é consistente com a brilhante
discussão sobre a família feita por Ludwig von Mises em sua magistral obra Socialism, publicada em
1922. Por que Mises abordou a família e o casamento em um livro de
economia que refutava o socialismo? Ele entendeu — ao contrário de muitos
economistas de hoje — que os opositores de uma sociedade livre e voluntária têm
um projeto amplo que geralmente começa com um ataque a essa mais do que crucial
instituição burguesa.
"Propostas para transformar as relações entre
os sexos há muito vêm de mãos dadas com planos para a socialização dos meios de
produção", observa Mises. "O casamento deve desaparecer junto
com a propriedade privada... O socialismo promete não apenas o bem-estar
— riqueza para todos —, mas também a felicidade universal no amor."
Mises observou que o livro de August Bebel (alemão
fundador do Partido da Social Democracia Alemã), Woman Under
Socialism, um canto de glória ao amor livre publicado em 1892, foi o
tratado esquerdista mais lido de sua época. Esse elo entre socialismo e
promiscuidade tinha uma proposta tática. Se você não acreditasse no
engodo de uma terra prometida onde a prosperidade surgiria magicamente, então
você ao menos podia ter a esperança de que haveria uma libertação do jugo da
maturidade e da responsabilidade sexual.
Os socialistas propunham um mundo no qual não
haveria impedimentos sociais ao ilimitado prazer pessoal, com a família e a
monogamia sendo os primeiros obstáculos a serem derrubados. Esse plano
funcionaria? Sem chance, disse Mises: o programa socialista para o amor
livre é tão impossível quanto o programa para a economia. Ambos vão
contra as restrições inerentes ao mundo real.
A família, assim como a estrutura da economia de
mercado, não é um produto de políticas; é um produto da associação voluntária,
tornada necessária por realidades biológicas e sociais. O capitalismo
reforçou o casamento e a família porque é um arranjo que depende do
consentimento e do voluntarismo em todas as relações sociais.
Assim, tanto a família quanto o capitalismo
compartilham as mesmas fundações institucionais e éticas. Ao tentar
abolir essas fundações, os socialistas iriam substituir uma sociedade baseada
nos contratos por uma baseada na violência. O resultado seria o total
colapso social.
Quando os social-democratas Sidney e Beatrice Webb viajaram
para a União Soviética, uma década após o lançamento do livro de Mises, eles
relataram uma realidade diferente. Eles encontraram mulheres, liberadas
do jugo da família e do casamento, vivendo vidas felizes e realizadas. É
claro que tudo não passava de uma fantasia tão grande — na realidade, uma
mentira escabrosa — quanto suas alegações de que a sociedade soviética estava
se tornando a mais próspera da história.
Atualmente, nenhum intelectual mentalmente são
defende o total socialismo econômico; mas uma versão mais diluída do programa
socialista para a família é o que está por trás de várias das políticas sociais
mais afamadas mundo afora. Essa agenda anda de mãos dadas com a restrição
da economia de mercado em outras áreas.
Não é nenhuma coincidência que a ascensão do amor
livre tenha acompanhado a ascensão e o completo desenvolvimento do estado
assistencialista. A ideia da emancipação da necessidade de trabalhar (e
de poupar e de investir) e da emancipação de nossa natureza sexual tem origem
em um mesmo impulso ideológico: superar as realidades estabelecidas pela
natureza. Como resultado, a família sofreu e entrou em declínio —
exatamente como Mises previu que aconteceria.
Embora os defensores da família e os proponentes do
capitalismo devessem estar unidos em um único programa político visando a
esmagar o estado intervencionista, eles tipicamente não estão. Os
defensores da família, mesmo os conservadores, frequentemente condenam o
capitalismo como sendo uma força alienadora, e defendem políticas insensatas,
como tarifas de importação para proteger a indústria nacional (programa de
cunho nacionalista), monopólios sindicais e programas de renda mínima para
pessoas casadas.
Ao mesmo tempo, os adeptos da livre iniciativa
demonstram pouco interesse em relação às genuínas preocupações dos defensores
da família. E ambos não parecem interessados nos ataques radicais à
liberdade e à família que políticas governamentais como leis que proíbem o
trabalho infantil, a obrigatoriedade de colocar os filhos em escolas (cujos
currículos são estipulados pelo governo), seguridade social (que desestimula a
necessidade imperativa da poupança), altos impostos e medicina socializada
representam. Na visão de Mises, essa cisão é deletéria.
Não é nenhum acidente que a proposta de se tratar
homens e mulheres como sendo radicalmente iguais, de ter o estado regulando as
relações sexuais, de colocar crianças em creches e escolas públicas, e de
garantir que filhos e pais permaneçam quase que desconhecidos uns para os
outros tenha se originado com Platão, que em nada se importava com a liberdade.
Também não é nenhum acidente que essas mesmas
propostas hoje em dia sejam defendidas por pessoas que não têm a mínima
consideração pela família e pelas leis econômicas.
A ORIGEM DA PROPRIEDADE PRIVADA E DA FAMÍLIA
É razoável
começar uma análise da história humana 5 milhões de anos atrás, quando a
linhagem humana evolucionária se separou da linhagem de nosso parente
não-humano mais próximo, o chimpanzé. Também é razoável começar 2,5
milhões de anos atrás, com a primeira aparição do homo habilis; ou 200.000
anos atrás, quando surgiu o primeiro representante do "homem
anatomicamente moderno"; ou 100.000 atrás, quando o homem anatomicamente
moderno adquiriu a forma humana padrão. Entretanto, quero começar apenas
50.000 anos atrás.
Esta é uma data
eminentemente razoável também. Nessa época, os humanos já haviam
desenvolvido uma linguagem completa, o que permitiu um radical aperfeiçoamento
em sua capacidade de aprender e inovar, fazendo com que o "homem
anatomicamente moderno" evoluísse e se transformasse no "homem de
comportamento moderno". Isto é, o homem havia adotado o estilo de
vida do caçador-coletor,
estilo esse que ainda existe até hoje em alguns pontos do mundo.
Há aproximadamente
50.000 anos, o número de "humanos modernos" provavelmente não era
superior a 5.000, todos confinados ao nordeste da África. Eles viviam em
sociedades formadas por um pequeno número de pessoas (de 10 a 30), as quais
ocasionalmente se encontravam e formavam um ajuntamento genético comum de
aproximadamente 150 a 500 pessoas (tamanho esse que os geneticistas descobriram
ser o necessário para se evitar efeitos disgênicos).
A divisão do
trabalho era limitada, com a principal separação sendo aquela entre mulheres,
que atuavam principalmente como coletoras, e homens, que atuavam principalmente
como caçadores. Apesar de tudo, a vida a princípio parecia ter sido boa
para nossos ancestrais. Apenas algumas horas de trabalho regular
permitiam uma vida confortável, com boa nutrição (alta proteína) e tempo de
lazer abundante.
Entretanto, a vida dos
caçadores e coletores teve de enfrentar um desafio excepcional.
Sociedades baseadas na caça e na coleta viviam de maneira essencialmente parasítica.
Isto é, eles nada acrescentavam à oferta de bens fornecida pela natureza.
Eles apenas exauriam a oferta de bens. Eles não produziam (exceto algumas
poucas ferramentas); apenas consumiam.
Eles não cultivavam e nem criavam;
simplesmente esperavam que a natureza regenerasse e repusesse o estoque de bens
consumidos.
O que essa forma de parasitismo gerava, portanto, era o
inescapável problema do crescimento populacional.
Para manter uma vida
confortável, a densidade populacional tinha de permanecer extremamente
baixa. Estima-se que 2,6 quilômetros quadrados de território era o mínimo
necessário para sustentar confortavelmente uma ou duas pessoas; e em regiões
menos férteis, eram necessários territórios ainda maiores.
As pessoas podiam, é
claro, tentar impedir que tal pressão populacional surgisse, e de fato as
sociedades de caça e coleta fizeram o possível nesse sentido. As pessoas
praticavam abortos, recorriam a infanticídios — principalmente infanticídio
feminino —, e reduziam o número de gravidezes ao incorrerem em longos períodos
de amamentação (o que, em combinação com a baixa gordura corporal típica de
mulheres que estavam sempre em contínuo movimento, reduz a fertilidade
feminina). Entretanto, embora isso aliviasse o problema, não o resolvia.
E a população continuou aumentando.
Dado que o tamanho da
população não podia ser mantido em um nível estacionário, restavam apenas três
alternativas para o crescente problema do "excesso"
populacional.
Podia-se abrir mão da vida de caça e coleta e encontrar uma
nova forma de organização social; podia-se entrar em conflito mortal para
se apossar da oferta limitada de alimentos; ou podia-se migrar.
Embora a migração de modo algum fosse algo sem custos — afinal, tinha-se que
trocar um território conhecido por territórios completamente desconhecidos —,
ela se transformou na opção menos custosa. E foi assim que, partindo da
África Oriental, sua terra natal, todo o globo foi sendo sucessivamente
conquistado por grupos de pessoas que se separaram de seus familiares e foram
formar novas sociedades em áreas até então nunca ocupadas por humanos.
Essencialmente, esse
processo era sempre o mesmo: um grupo invadia um território qualquer, a pressão
populacional começava a incomodar, algumas pessoas permaneciam ali, e outras se
mudavam para outros lugares — geração após geração. Uma vez separadas,
praticamente não mais havia contato entre as várias sociedades de caça e
coleta.
Consequentemente, embora de início estivessem intimamente
relacionadas umas às outras através de relações de parentesco direto, essas
sociedades formaram concentrações genéticas separadas, e, ao longo de tempo,
confrontadas com ambientes naturais diferentes e como resultado de mutações e
derivações genéticas interagindo com a seleção natural, elas assumiram
aparências claramente distintas.
Tudo indica que esse
processo também começou há aproximadamente 50.000 anos, pouco tempo depois do
surgimento do "homem de comportamento moderno" e sua aquisição da
habilidade de construir barcos. Dessa época até por volta de 12.000 a
11.000 anos atrás, as temperaturas globais caíram gradualmente (desde então
estamos em um período de aquecimento interglacial) e os níveis
dos oceanos também caíram correspondentemente.[*]
As pessoas cruzaram o
Mar Vermelho no Portão
das Lágrimas — que, na época, era apenas um curto espaço de água
salpicada de ilhas —, e chegaram à ponta sul da península Arábica (que
apresentava um período comparativamente úmido àquela época). Dali em
diante, preferindo se manter em climas tropicais, para os quais o organismo
havia sido adaptado, a migração continuou voltada para o leste. As
viagens eram feitas na maioria das vezes em barcos, pois, até há
aproximadamente 6.000 anos, quando o homem aprendeu a domar os cavalos, essa
forma de transporte era muito mais rápida e mais conveniente do que viajar à
pé.
Assim, primeiramente a
migração ocorreu ao longo do litoral — e prosseguia dali até o interior por
meio de vales fluviais — até a Índia. Na Índia, aparentemente o movimento
populacional se dividiu em duas direções.
De um lado, ele prosseguiu
contornando a península índica até o sudeste asiático e a Indonésia (que, na
época, era conectada ao continente asiático), finalmente chegando ao hoje
"alagado" continente de Sahul (Austrália, Nova Guiné e Tasmânia, países
esses que, até 8.000 anos atrás, eram interligados por terra). Esse
continente, na época, era separado do continente asiático apenas por um largo
canal de água salpicado de ilhas que permitiam jornadas curtas entre si.
Outra parte desse mesmo movimento contornou a Índia e tomou o rumo norte até a
costa da China e, finalmente, até o Japão.
O segundo movimento
populacional, assim como o relatado acima, também se subdividiu. Uma
corrente saiu da Índia e tomou a direção noroeste, passando por Afeganistão,
Irã e Turquia, até finalmente chegar à Europa. A outra corrente seguiu a
direção nordeste até o sul da Sibéria.
Migrações posteriores,
muito provavelmente ocorridas em três ondas, com a primeira ocorrendo entre
14.000 e 12.000 anos atrás, saíram da Sibéria, passaram pelo Estreito de Bering
— na época (aproximadamente 11.000 anos atrás) uma ponte de terra — e chegaram
ao continente americano. Apenas 1.000 anos depois, aparentemente chegaram
à Patagônia. A última rota de migração partiu de Taiwan, que 5.000 anos
atrás já estava ocupada, navegou pelo Pacífico e chegou às ilhas da
Polinésia. E, finalmente, apenas 800 anos atrás, chegaram à Nova
Zelândia.
Independentemente de
todos os detalhes complicados, o fato é que, a partir de um determinado
momento, a massa de terra disponível para ajudar a satisfazer as necessidades
humanas não mais podia ser aumentada.
Para utilizar um jargão econômico,
a oferta do fator de produção "terra" se tornou fixa, o que significa
que todo e qualquer aumento no tamanho da população humana tinha de ser
sustentado pela mesma e imutável quantidade de terra. Baseando-se na lei
econômica dos retornos, sabemos que esta situação tem de resultar em um
problema malthusiano. A lei dos retornos declara que, para qualquer combinação
dos fatores de produção — no caso específico: terra e trabalho —, existe uma
combinação ótima. Se esta combinação ótima não for seguida, isto é, se
apenas um fator de produção for aumentado — no caso, o trabalho — enquanto o
outro — a terra — for mantido constante, então a quantidade de bens físicos
produzida não aumentará absolutamente nada ou, na melhor das hipóteses,
aumentará em uma proporção muito menor do que o aumento do fator trabalho.
Ou seja, tudo o mais
constante, um aumento no tamanho da população para além de um determinado ponto
não é acompanhado de um aumento proporcional da riqueza. Se esse ponto
for ultrapassado, a quantidade per capita de bens físicos produzidos
diminui. E o padrão de vida, na média, irá cair. Atinge-se um ponto
de superpopulação absoluta.
O que fazer quando
confrontado com esse desafio? Das três opções previamente disponíveis
como resposta a um aumento na pressão populacional — migrar, guerrear ou
encontrar um novo modo de organização social —, somente as duas últimas continuavam
disponíveis. Aqui irei abordar a última resposta, que é a solução
pacífica.
O desafio foi
respondido com uma reação dupla: de um lado, por meio da economização da terra;
de outro, por meio da "privatização" da produção de rebentos — em
suma: por meio da instituição da família e da propriedade privada.
Para entender essas
reações, é preciso antes olharmos o tratamento dado ao fator de produção
"terra" pelas sociedades de caça e coleta.
Pode-se seguramente
assumir que a propriedade privada existia dentro da estrutura de uma família
tribal. A propriedade privada existia para coisas como vestimentas
pessoais, ferramentas, utensílios e ornamentos. Quando tais itens eram
produzidos por indivíduos específicos e identificáveis (durante seus momentos
de lazer), ou eram adquiridos de seus fabricantes originais por meio de trocas
ou mesmo como presentes, eles eram considerados propriedade individual.
Por outro lado, quando
os bens eram o resultado de algum esforço conjunto, eles eram considerados bens
coletivos. Isso se aplicava de maneira mais definitiva para os meios de
subsistência: aos alimentos coletados e aos animais selvagens caçados em
decorrência de alguma divisão intra-tribal do trabalho. (Sem dúvida, a
propriedade coletiva, desta forma, teve um papel muito proeminente nas
sociedades de caça e coleta, e é por causa disso que o termo "comunismo
primitivo" tem sido frequentemente empregado para descrever as economias
tribais primitivas: cada indivíduo contribuía para a "renda" familiar
de acordo com suas capacidades, e cada indivíduo recebia sua fatia de renda de
acordo com suas necessidades.)
E o que dizer sobre a
terra em que todas as atividades tribais ocorriam? Pode-se seguramente
descartar a hipótese de que a terra era considerada propriedade privada.
Porém, seria ela propriedade coletiva?
Tipicamente, isso tem sido
assumido como verdade. Entretanto, o fato é que a terra não era nem
propriedade coletiva nem propriedade privada, mas sim apenas parte do ambiente —
ou, mais especificamente, a terra possibilitava as condições gerais da
ação humana.
O mundo externo em que
as ações do homem ocorriam pode ser dividido em duas partes categoricamente
distintas. De um lado, havia aqueles elementos que eram considerados meios —
ou bens econômicos; de outro lado, havia aqueles elementos que eram
considerados o ambiente.
São três os requerimentos para que um
elemento do mundo externo seja classificado como um meio ou como um bem
econômico. Primeiro, para que um elemento se torne um bem econômico, deve
haver uma necessidade humana. Segundo, deve haver a percepção humana de
que tal elemento é dotado de propriedades que satisfaçam essa
necessidade. Terceiro, e mais importante no presente contexto, um
elemento do mundo externo assim percebido deve estar sob o controle humano,
de modo que ele possa ser empregado para satisfazer essa necessidade.
Ou seja, somente se um
elemento apresentar uma conexão causal com uma necessidade humana, e esse
elemento estiver sob o controle humano, pode-se então dizer que essa entidade
foi apropriada — tornou-se um bem — e, assim, virou propriedade de
alguém. Por outro lado, se um elemento do mundo externo apresentar uma
conexão causal com uma necessidade humana, porém ninguém o controla ou
interfere nele, então tal elemento deve ser considerado parte de um ambiente
não apropriado por ninguém — logo, não é propriedade de ninguém.
Com o auxílio dessas
considerações, é possível agora responder à questão a respeito do status da
terra em uma sociedade de caça e coleta.
Certamente, os frutos
colhidos em um arbusto são propriedade privada; porém, o que dizer do arbusto
de onde os frutos foram colhidos?
Ele sem dúvida apresenta uma conexão
causal com esses frutos. Porém, o arbusto só deixará seu status original
de possibilitador das condições gerais da ação humana, e de mero fator
contribuinte para a satisfação das necessidades humanas, e ascenderá ao status
de propriedade e de genuíno fator de produção quando ele tiver sido apropriado
— isto é, quando o homem tiver propositadamente interferido no processo causal
e natural que interliga o arbusto aos frutos por ele produzidos.
O homem
pode fazer isso ao, por exemplo, regar o arbusto ou aparar seus galhos com o
intuito de produzir um resultado específico: no caso, um aumento da colheita de
frutos acima daquele nível que, em outros contextos, seria o obtido
naturalmente.
Similarmente, não há
dúvidas de que o animal caçado é propriedade privada; porém, o que dizer de
toda a manada da qual esse animal fazia parte?
A manada deve ser considerada
sem proprietário enquanto o homem ainda não tiver feito nada que
possa ser interpretado (e isso está em sua própria mente) como sendo algo que
crie uma conexão causal com a satisfação de uma dada necessidade.
A
manada se torna propriedade somente quando o pré-requisito da interferência sobre
a cadeia natural de eventos (com o intuito de produzir algum resultado
desejado) tiver sido satisfeito. Isso ocorreria, por exemplo, assim que o
homem incorresse na prática de arrebanhar e pastorear os animais — isto é, tão
logo ele efetivamente tentasse controlar os movimentos do rebanho.
E o que dizer,
entretanto, da terra sobre a qual o movimento controlado do rebanho
ocorre? De acordo com nossas definições, esse pastor não pode ser
considerado o proprietário dessa terra. Condutores de rebanho meramente
seguem os movimentos naturais da manada, e sua interferência sobre a natureza
restringe-se a manter o rebanho unido de modo a ter um acesso fácil a qualquer
um dos animais caso haja a necessidade de uma maior oferta de carne
animal.
Condutores de rebanho não interferem na terra para controlar os
movimentos da manada; eles interferem apenas nos movimentos dos membros da
manada. A terra só irá se tornar propriedade quando os condutores de
rebanho deixarem de ser condutores e se dedicarem à pecuária — isto é, assim
que eles começarem a tratar a terra como um meio (escasso) com o intuito de
controlar o movimento dos animais.
Para isso, eles têm de controlar a
terra. Isso requer que a terra seja de certa forma delineada, seja por
meio de cercas ou pela construção de alguns outros obstáculos que restrinjam o
livre fluxo natural de animais. Em vez de ser meramente um fator que
contribui para a produção de rebanhos, a terra passa assim a ser um genuíno
fator de produção.
Os que essas
considerações demonstram é que se trata de um erro imaginar que a terra era
propriedade coletiva nas sociedades de caça e coleta. Caçadores não são
condutores de rebanho e muito menos praticam a pecuária ou a criação de gado; e
coletores não são jardineiros ou agricultores.
Eles não exercem controle
sobre a fauna e flora naturalmente ofertadas pelo ambiente, pois eles não as
cultivam nem administram. Eles simplesmente se apossam das partes da
natureza que estão facilmente disponíveis. Para eles, a terra nada mais é
do que uma condição para suas atividades; a terra não é sua propriedade.
Portanto, o que pode
ser considerado o primeiro passo rumo a uma solução da armadilha malthusiana
enfrentada pelo crescente número de sociedades baseadas na caça e na coleta foi
precisamente o estabelecimento da propriedade sobre a terra.
Pressionados
pela queda no padrão de vida — resultante da superpopulação absoluta —, membros
das tribos (separadamente ou coletivamente) sucessivamente se apropriaram de um
número cada vez maior de terras (natureza) até então desapropriadas. Essa
apropriação da terra teve um imediato efeito duplo. Primeiro, mais bens
foram produzidos e, correspondentemente, mais necessidades puderam ser
satisfeitas. De fato, esse efeito foi o exato motivo por trás da
apropriação da terra: a constatação de que a terra possui uma conexão causal
com a satisfação das necessidades humanas e que, mais ainda, ela pode ser
controlada.
Foi ao controlar a
terra que o homem de fato começou a produzir bens ao invés de
meramente consumi-los. (Importante observar que essa produção de
bens também envolvia poupar e estocar bens para o consumo
posterior).
Segundo, e como consequência do primeiro, a maior
produtividade obtida por meio da economização (racionalidade no uso) da terra
possibilitou que um maior número de pessoas pudesse sobreviver com uma mesma
quantidade de terra.
Com efeito, foi estimado que a apropriação de terra
e a correspondente mudança de uma existência baseada na caça e na coleta para
uma existência baseada na agricultura e na criação de animais possibilitou que
uma população de dez a cem vezes maior do que a população anterior pudesse ser
sustentada com a mesma quantidade de terra.
Entretanto, a
economização da terra era apenas parte da solução para o problema criado pela
crescente pressão populacional. Por meio da apropriação da terra, fez-se
um uso mais eficaz da mesma, permitindo que uma população amplamente maior
pudesse ser sustentada. Porém, a instituição da propriedade da terra, por
si só, não afetou o outro lado do problema: a contínua proliferação de novos
rebentos.
Esse aspecto do problema também requeria uma solução.
Era
necessária a criação de uma instituição social que deixasse essa proliferação
sob controle. E a instituição criada para consumar esse objetivo foi a
instituição da família. Como explicou Thomas Malthus, para solucionar o
problema da superpopulação, junto com a instituição da propriedade, o "as
relações sexuais entre os gêneros" também teve de passar por mudanças
fundamentais.
Qual era a relação
sexual entre os gêneros antes e qual foi a inovação institucional produzida
nesse sentido pela família?
Em termos de teoria econômica, pode-se
descrever que a mudança se deu de uma situação em que tanto os benefícios de se
criar descendentes — a criação de mais um produtor em potencial —
quanto especialmente os custos dessa criação — a criação de um consumidor (comedor)
adicional — eram socializados, isto é, pagos por toda a sociedade e não apenas
pelos "produtores" desses rebentos, para uma situação em que tanto os
benefícios quanto os custos envolvidos na procriação passaram a ser
internalizados pelos indivíduos diretamente responsáveis pela produção dos
rebentos.
Quaisquer que tenham
sido os detalhes mais exatos, tudo indica que a instituição de um
relacionamento monógamo estável — bem como a de um relacionamento polígamo
estável — entre homens e mulheres, o que atualmente é associada ao termo
família, é algo relativamente recente na história da humanidade, e foi
precedido por uma instituição que pode ser amplamente definida como sendo de
relações sexuais "irrestritas" ou "não reguladas", ou mesmo
de "matrimônio grupal" ou "poliamor" (algumas vezes
também rotulado de "amor
livre").
As relações sexuais entre os gêneros durante esse
estágio da história humana não excluíam a existência de relacionamentos
temporários a dois entre um homem e uma mulher. Entretanto, em princípio,
toda mulher era considerada uma potencial parceira sexual para todo homem, e
vice versa. Nas palavras de Friedrich Engels:
"Os homens viviam em
poligamia e suas mulheres simultaneamente em poliandria, e seus filhos
eram considerados como sendo de todos eles. ... Cada mulher pertencia a todos
os homens, e cada homem pertencia a todas as mulheres."
Porém, o que Engels e
vários outros socialistas posteriores não perceberam em relação à glorificação
do amor livre — tanto a que ocorrera no passado quanto a que supostamente viria
no futuro — é o fato de que tal instituição possui um efeito direto na produção
de rebentos. Como Ludwig von Mises comentou:
"O fato é que, mesmo
que uma comunidade socialista possa implementar o 'amor livre', ela não pode de
maneira alguma ficar livre de procriações". O que Mises quis subentender
com esse comentário é que o amor livre tem consequências: gravidezes e
descendentes. E uma prole gera benefícios e também custos.
Esse
dilema não seria um problema enquanto os benefícios excedessem os custos, isto
é, enquanto um membro adicional da sociedade agregasse mais a ela como produtor
de bens do que subtraísse dela como consumidor — e isso pode perfeitamente vir
a ser o caso por algum tempo.
No entanto, como ensina
a lei dos retornos, essa situação não pode durar para sempre.
Inevitavelmente, chegará um ponto em que os custos de rebentos adicionais irão
exceder os benefícios.
A partir daí, portanto, qualquer procriação
adicional deve ser interrompida — contenções morais devem ser exercidas —, a
menos que se queira vivenciar uma queda progressiva nos padrões de vida.
Contudo, se as crianças são consideradas como sendo de todo mundo e, ao mesmo
tempo, de ninguém, pois todo mundo mantém relações sexuais com todo mundo,
então os incentivos para conter a procriação desaparecem ou são
significativamente diminuídos.
Instintivamente, em virtude da natureza
biológica do ser humano, todo homem e toda mulher são impulsionados a difundir
e espalhar seus genes para a próxima geração da espécie. Quanto mais
rebentos um indivíduo gerar, melhor, pois mais de seus genes sobreviverão.
É claro que esse instinto humano natural pode ser controlado por uma
deliberação racional.
Porém, se pouco ou nenhum sacrifício econômico
tivesse de ser feito em decorrência dos instintos animais de cada indivíduo —
porque todas as crianças seriam sustentadas pela sociedade como um todo —,
então pouco ou nenhum incentivo existiria para se empregar a razão em questões
sexuais, isto é, para se exercer a contenção moral.
De um ponto de vista
puramente econômico, portanto, a solução para o problema da superpopulação
deveria ser imediatamente aparente. A administração das crianças — ou,
mais corretamente, a curadoria das crianças — tinha de ser privatizada.
Em vez de considerar as crianças como sendo propriedade coletiva da "sociedade",
ou responsabilidade da "sociedade", ou mesmo ver o nascimento de
crianças como um evento natural incontrolado e incontrolável — e, como
consequência, encarar as crianças como propriedade de ninguém e não estando aos
cuidados de ninguém —, as crianças tiveram de passar a ser consideradas
entidades que foram produzidas privadamente e, por isso, confiadas aos cuidados
privados de quem as produziu.
Além do mais e
finalmente: com a formação de famílias monógamas ou polígamas surgiu outra
decisiva inovação. Antes, todos os membros de uma tribo formavam uma
família única e uniforme, e a divisão do trabalho intra-tribal era
essencialmente uma divisão do trabalho intra-família. Com o advento da
formação de famílias veio a fragmentação de uma grande família uniforme em
várias famílias independentes, e com isso veio também a formação de várias
propriedades privadas sobre a terra.
Ou seja, a apropriação
de terras anteriormente descrita não foi simplesmente uma transição de uma
situação em que uma terra que antes era sem dono passou a ser propriedade, mas
sim, mais precisamente, uma transição de uma situação em que uma terra até
então sem dono foi transformado em propriedade de famílias separadas
(permitindo assim também o surgimento da divisão do trabalho inter-famílias).
Consequentemente,
portanto, a maior renda social possibilitada pela propriedade da terra não mais
era distribuída como era anteriormente: para cada membro da sociedade "de
acordo com suas necessidades".
A fatia de cada família no total da
renda passou a depender do produto que cada uma imputava à economia — isto é,
passou a depender do seu trabalho e da sua propriedade investidos na
produção. Em outras palavras: o antes difuso "comunismo" pode
até ter continuado existindo dentro de cada família, porém o comunismo
desapareceu da relação entre os membros de famílias diferentes.
As rendas
das diferentes famílias eram distintas, dependentes da quantidade e da
qualidade do trabalho e da propriedade investidos, e ninguém tinha o direito de
reivindicar a renda produzida pelos membros de outra família. Com isso, a
"carona" sobre os esforços alheios tornou-se amplamente — ou
totalmente — impossível. Aquele que não trabalhasse não mais poderia
esperar comer gratuitamente.
Deste modo, em resposta
à crescente pressão populacional, um novo modo de organização social passou a
existir, substituindo aquele estilo de vida "caça e coleta" que havia
caracterizado a maior parte da história. Como resumiu Ludwig von Mises:
A propriedade privada
dos meios de produção é o princípio regulador que, dentro de uma sociedade,
equilibra os limitados meios de subsistência à disposição da sociedade com a
bem menos limitada capacidade de aumento na quantidade de consumidores.
Ao fazer com que a fatia do produto social de cada membro da sociedade seja
dependente do produto economicamente imputado a ele, isto é, dependente de seu
trabalho e de sua propriedade, a matança de seres humanos em decorrência da
luta pela sobrevivência, como ocorre nos reinos animal e vegetal, é substituída
por uma redução na taxa de natalidade em decorrência das forças sociais.
A 'contenção moral' — as limitações sobre a produção de rebentos impostas pelas
posições sociais — substitui a batalha pela existência.
___________________________________________
Nota
[*] Na
realidade, o último grande período de aquecimento já havia terminado há
aproximadamente 120.000 anos. Durante este período — isto é, mais de
120.000 anos atrás — hipopótamos viviam nos rios Reno e Tâmisa, e a Europa
tinha uma espécie de "aparência africana". Dali em diante,
quando as temperaturas começaram a cair, as geleiras se moveram continuamente
na direção sul, e o nível do mar na Europa diminuiu em mais de 100 metros. Os
rios Tâmisa e Elba se tornaram afluentes do Reno, antes de este passar a correr
até o Mar do Norte e dali para o Atlântico. Quando este período terminou,
muito abruptamente, há aproximadamente 12.000 anos, as geleiras rapidamente
retornaram e o nível do mar subiu, não apenas milímetros por ano, mas sim muito
rapidamente, quase que como um dilúvio. Em um curto espaço de tempo, a
Inglaterra e a Irlanda, que até então eram ligadas ao continente europeu, se
tornaram ilhas. Foi assim que o Mar Báltico e grande parte do atual Mar
do Norte surgiram. Do mesmo modo, grande parte do que hoje é o Golfo
Pérsico passou a existir apenas naquela época.