Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 23
de maio de 2011
O prof. Alexandre
Duguin, à testa da elite intelectual russa que hoje molda a política
internacional do governo Putin, diz que o grande plano da sua nação é restaurar
o sentido hierárquico dos valores espirituais que a modernidade soterrou. Para
pessoas de mentalidade religiosa, chocadas com a vulgaridade brutal da vida
moderna, a proposta pode soar bem atraente. Só que a realização da ideia passa
por duas etapas. Primeiro é preciso destruir o Ocidente, pai de todos os males,
mediante uma guerra mundial, fatalmente mais devastadora que as duas
anteriores. Depois será instaurado o Império Mundial Eurasiano sob a liderança
da Santa Mãe Rússia.
Quanto ao primeiro
tópico: a “salvação pela destruição” é um dos chavões mais constantes do
discurso revolucionário. A Revolução Francesa prometeu salvar a França pela
destruição do Antigo Regime: trouxe-a de queda em queda até à condição de
potência de segunda classe. A Revolução Mexicana prometeu salvar o México pela
destruição da Igreja Católica: transformou-o num fornecedor de drogas para o
mundo e de miseráveis para a assistência social americana.
A Revolução Russa
prometeu salvar a Rússia pela destruição do capitalismo: transformou-a num
cemitério. A Revolução Chinesa prometeu salvar a China pela destruição da
cultura burguesa: transformou-a num matadouro. A Revolução Cubana prometeu
salvar Cuba pela destruição dos usurpadores imperialistas: transformou-a numa
prisão de mendigos. Os positivistas brasileiros prometeram salvar o Brasil
mediante a destruição da monarquia: acabaram com a única democracia que havia
no continente e jogaram o país numa sucessão de golpes e ditaduras que só
acabou em 1988 para dar lugar a uma ditadura modernizada com outro nome.
Agora o prof. Duguin
promete salvar o mundo pela destruição do Ocidente. Sinceramente, prefiro não
saber o que vem depois. A mentalidade revolucionária, com suas promessas
auto-adiáveis, tão prontas a se transformar nas suas contrárias com a cara mais
inocente do mundo, é o maior flagelo que já se abateu sobre a humanidade. Suas
vítimas, de 1789 até hoje, não estão abaixo de trezentos milhões de pessoas –
mais que todas as epidemias, catástrofes naturais e guerras entre nações mataram
desde o início dos tempos.
A essência do seu discurso, como creio já ter
demonstrado, é a inversão do sentido do tempo: inventar um futuro e
reinterpretar à luz dele, como se fosse premissa certa e arquiprovada, o
presente e o passado. Inverter o processo normal do conhecimento, passando a
entender o conhecido pelo desconhecido, o certo pelo duvidoso, o categórico
pelo hipotético. É a falsificação estrutural, sistemática, obsediante,
hipnótica. O prof. Duguin propõe o Império Eurasiano e reconstrói toda a
história do mundo como se fosse a longa preparação para o advento dessa coisa
linda. É um revolucionário como outro qualquer. Apenas, imensamente mais
pretensioso.
Quanto ao Império
Mundial Eurasiano, com um pólo oriental sustentado nos países islâmicos, no
Japão e na China, e um pólo ocidental no eixo Paris-Berlim-Moscou, não é de
maneira alguma uma idéia nova. Stalin acalentou esse projeto e fez tudo o que
podia para realizá-lo, só fracassando porque não conseguiu, em tempo, criar uma
frota marítima com as dimensões requeridas para realizá-lo. Ele errou no timing:
dizia que os EUA não passariam dos anos 80. Quem não passou foi a URSS.
Como o prof. Duguin
adorna o projeto com o apelo aos valores espirituais e religiosos, em lugar do
internacionalismo proletário que legitimava as ambições de Stálin, parece
lógico admitir que a nova versão do projeto imperial russo é algo como um
stalinismo de direita.
Mas a coisa mais óbvia
no governo russo é que seus ocupantes são os mesmos que dominavam o país no
tempo do comunismo. Substancialmente, é o pessoal da KGB (ou FSB, que a mudança
periódica de nomes jamais mudou a natureza dessa instituição). Pior ainda, é a
KGB com poder brutalmente ampliado: de um lado, se no regime comunista havia um
agente da polícia secreta para cada 400 cidadãos, hoje há um para cada 200,
caracterizando a Rússia, inconfundivelmente, como Estado policial; de outro, o
rateio das propriedades estatais entre agentes e colaboradores da polícia
política, que se transformaram da noite para o dia em “oligarcas” sem perder
seus vínculos de submissão à KGB, concede a esta entidade o privilégio de atuar
no Ocidente, sob camadas e camadas de disfarces, com uma liberdade de
movimentos que seria impensável no tempo de Stalin ou de Kruschev.
Ideologicamente, o
eurasismo é diferente do comunismo. Mas ideologia, como definia o próprio Karl
Marx, é apenas um “vestido de idéias” a encobrir um esquema de poder. O esquema
de poder na Rússia trocou de vestido, mas continua o mesmo – com as mesmas
pessoas nos mesmos lugares, exercendo as mesmas funções, com as mesmas ambições
totalitárias de sempre.
O Império Eurasiano
promete-nos uma guerra mundial e, como resultado dela, uma ditadura global.
Alguns de seus adeptos chegam a chamá-lo “o Império do Fim”, uma evocação
claramente apocalíptica. Só esquecem de observar que o último império antes do
Juízo Final não será outra coisa senão o Império do Anticristo.