"Por Aline Pinheiro"
Secretário da Receita Federal por oito anos, no governo de Fernando Henrique Cardoso, Everardo Maciel se notabilizou como um arrecadador voraz. Entre 1995 e 2002 — período em que foi o czar do fisco nacional — a carga tributária saltou de 28,95% para 32,65% em relação ao PIB. Nos sete anos seguintes, deu outro salto e, em 2009, alcançou 35,02% (os dados são do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário). Desde que deixou de ser vidraça, Maciel se esmerou no direito de ser estilingue e tornou-se um arguto analista do sistema tributário brasileiro e das propostas para melhorá-lo — ou para piorá-lo, como ele próprio prefere — com um conhecimento de causa que poucos cidadãos têm igual.
Everardo Maciel entende que a proposta de Reforma Tributária do governo é uma prova de que a capacidade de piorar do ser humano é infinita. A reforma parte do princípio errado, diz Maciel. O especialista em tributos é um ferrenho defensor da desconstitucionalização de matéria tributária. Já há assuntos demais na Constituição Federal, diz. “O custo político para modificar um dispositivo constitucional é muito grande. É um erro recorrente isso e repito: a experiência mostra que todas as mudanças constitucionais conseguiram piorar o sistema.”
Ele revela que o sistema tributário brasileiro não é tão ruim como querem fazê-lo parecer. A tributação da renda, por exemplo, é a mais moderna do mundo, diz. A complexidade recai mesmo na tributação do consumo, que tem suas raízes históricas no processo de descentralização do poder no país, segundo seus relatos.
Everardo Maciel recebeu a Consultor Jurídico em seu escritório em Brasília e discutiu de questões macro a questões pontuais do sistema tributário brasileiro.
Leia a entrevista.
ConJur — O sistema tributário brasileiro funciona bem?
Everardo Maciel — Às vezes, somos tentados, talvez por vocação de maneira bem humorada, como diz Nelson Rodrigues, a supor que tudo que existe no Brasil é ruim. O nosso sistema tributário, como qualquer sistema tributário do mundo, tem virtudes e defeitos. A complexidade do nosso sistema tem raízes históricas e culturais. Não decorrem meramente de atos de vontade praticados por governantes ou pelos legisladores, mas pela interação de um conjunto de forças políticas que resultaram em circunstâncias que demonstram complexidade. O mesmo ocorre em outros lugares, como nos Estados Unidos. A afirmação de que o sistema tributário americano é um dos mais simples é falsa. Ser simples demais torna o sistema tributário muito vulnerável à sonegação. Para se ter uma ideia, a legislação do Imposto de Renda nos Estados Unidos tem 65 mil páginas e existem 600 modelos diferentes de declarações. Para quem olha de perto, o sistema tributário norteamericano é mais complexo do que o brasileiro.
ConJur — E em comparação com os países da União Europeia, o sistema tributário brasileiro deixa tanto a desejar?
Everardo Maciel — A União Europeia tem modelos de tributação sobre a renda complexos, ineficazes e mais atrasados do que o do Brasil. A legislação brasileira é certamente a mais moderna do mundo em matéria de regra de tributação da renda do cidadão. Não conheço nada que se compare à brasileira.
ConJur — Mas não dá para negar que a tributação no Brasil é complexa. Veja, por exemplo, o ICMS, que ninguém sabe direito onde e como deve pagar.
Everardo Maciel — Sem dúvida. A tributação do consumo no Brasil é muito mais complexa que a americana e que a dos países europeus. Essa complexidade vem de um federalismo perfeito definido com a implantação da República, mas que, quando se trata de tributação, se revela muito confuso. A reforma tributária da década de 1960, talvez a última reforma profunda em termos de tributação do consumo, cometeu um erro que permanece até hoje, que foi conferir aos estados a titularidade do ICM, hoje chamado de ICMS. Isso gerou uma infinidade de conflitos. Nenhum outro país seguiu esse modelo.
ConJur — Então por que foi adotado pelo Brasil?
Everardo Maciel — Por conta do momento histórico. O Brasil passava por um processo de descentralização. Esse processo foi feito a partir da institucionalização das transferências federais para estados e municípios. No início, as transferências tinham percentuais razoáveis. Escolheram IPI e Imposto de Renda para repartir porque eram impostos clássicos, e não de natureza regulatória, como os outros. Essa descentralização, no entanto, aconteceu de forma anárquica. Não foi acompanhada de uma discriminação adequada de encargos públicos entre as entidades federativas. Por conta disso, os percentuais do repasse foram aumentando. A Constituição Federal de 1988 revelou uma omissão completa do governo federal e, entre outros desastres, os percentuais de transferências do IR e do IPI subiram dramaticamente. Hoje, a transferência de IPI chega a 57% da arrecadação e do Imposto de Renda, a 47%.
ConJur — E por que a União, que com o decorrer do tempo perdeu receita, não quebrou?
Everardo Maciel — Surgiram as contribuições sociais. Como não ocorreu a discriminação de encargos e a União perdeu receita, as contribuições surgiram como forma de a União compensar essa perda de arrecadação.
ConJur — Qual a justificativa para aumentar os repasses para estados e municípios?
Everardo Maciel — O aumento da transferência teve mais motivação política do que técnica. Deixou, como consequência, o aumento das contribuições e a competição entre diferentes tributos federais pela mesma base de cálculo no caso do consumo. Essa multi-incidência de tributos sobre uma mesma base é a principal razão para explicar a complexidade.
ConJur — A proposta de reforma tributária apresentada pelo governo resolve o problema das transferências e a consequente complexidade da tributação do consumo?
Everardo Maciel — Esse projeto do governo é uma evidência claríssima de que a capacidade de piorar o país é infinita. Ele já começa errado. Não deveria ser usada a via constitucional para fazer mudanças que poderiam ser feitas pela via infraconstitucional. Não precisa de uma Emenda Constitucional para mudar. Todas as mudanças constitucionais tributárias brasileiras desde os anos de 1960 só conseguiram piorar o sistema tributário no Brasil. As mudanças propostas sempre visam instituir privilégios para o setor que tiver o lobby mais forte. Outro ponto é que, quando se fala em reforma tributária, fala-se de uma disputa de renda entre União, estados e municípios. É uma discussão política de quem precisa de mais dinheiro, mas sem fundamento técnico.
ConJur — Não se chegou ainda a um critério técnico para determinar o custo de cada esfera da federação e a correspondente repartição dos recursos arrecadados?
Everardo Maciel — Não. Não há discriminação de políticas públicas no país e, por isso, não sabemos quais os custos das entidades federativas. Estamos numa terra de cegos, onde nada se vê.
ConJur — O senhor está dizendo que não há como calcular os encargos para saber se a carga tributária é condizente?
Everardo Maciel — Não há como fazer isso. A descentralização no país foi anárquica. Por exemplo, a saúde é encargo de quem? Da União, estado ou municípios? É dos três. A competência é concorrente. O mesmo acontece com a educação. Não estou propondo ideias simplistas. Não é dizer que tal função deve ser do estado ou do município. Isso tem de ser visto no contexto da disparidade regional no país para tomar cuidado e suprir deficiências, mas as regras têm de ser objetivas.
ConJur — O senhor afirmou que uma reforma tributária não precisa de Emenda Constitucional para acontecer. Basta uma lei complementar?
Everardo Maciel — Não. Basta uma lei ordinária. Não se deve pôr na Constituição aquilo que pode ser feito por meio de lei. O custo político para modificar um dispositivo constitucional é muito grande. É um erro recorrente isso e repito: a experiência mostra que todas as mudanças constitucionais conseguiram piorar o sistema. Essa proposta pelo governo pioraria ainda mais.
ConJur — O conteúdo da proposta não é bom?
Everardo Maciel — Não. Dentre outras sandices, a proposta diz que vai acabar com a guerra fiscal, mas perpetua incentivos ilegais. Ou seja, acaba a guerra por falta de pólvora. Ela não será mais necessária porque a ilegalidade será constitucional.
ConJur — A guerra fiscal é de todo ruim? Ela não serve também para estimular o desenvolvimento de alguns estados?
Everardo Maciel — Guerra fiscal não é boa nem ruim. Ela pode estimular o desenvolvimento ou não, mas deve ser coibida porque é ilegal. Com regras claras e bem definidas, não há espaço para se falar em guerra fiscal. Hoje, a guerra fiscal no Brasil é vista com muita condescendência. É um caso de hipocrisia nacional. Todos combatem, mas ninguém faz nada para acabar com ela. Os estados que se sentem prejudicados não se movem. O Ministério Público fica indiferente, quando deveria ser protagonista na condição de fiscal da lei.
ConJur — O Imposto sobre Valor Agregado (IVA), previsto na proposta de reforma tributária, não elimina ou pelo menos diminui a guerra fiscal?
Everardo Maciel — A PEC não propõe criação alguma. Ela fala de um IVA federal e um estadual, mas propõe um imposto que não tem paradigma no mundo e não se sabe exatamente o que é. Vejo esse tributo como um invertebrado gasoso. Ou seja, não é nada. O Brasil já tem seu IVA, que é o ICMS. Foi, aliás, o segundo IVA do mundo, logo depois do francês. A denominação ICM, tecnicamente, é mais qualificada que IVA. Mas, é claro, agora quer se chamar de IVA porque é um nome francês.
ConJur — Criar um imposto único ou, pelo menos, unir ISS com ICMS não simplificaria em muito o sistema tributário brasileiro?
Everardo Maciel — Não. Isso pode complicar ainda mais. Veja o caso do Simples. Tínhamos um Simples Federal, que não era tão simples assim. Aí, criou-se o Simples Nacional, que é a fusão do Simples federal, estadual e municipal. Hoje, não conheço imposto mais complicado que o Simples Nacional. É uma sobreposição de exigências tão grande que a Lei Complementar que institui o Simples Nacional tem um artigo que é apenas um pedido de desculpas do legislador. O Legislativo ficou com sentimento de culpa ao fazer aquele monstro, tanto que escreveu um artigo que é mais ou menos assim: será disponibilizado sistema operacional eletrônico para simplificar a apuração do Simples. Eu nunca vi um pedido de desculpas numa lei. Achar que simplificar é fazer fusão de tributos é um pensamento simplista. Simplificar não é isso.
ConJur — A quantidade de regras no Brasil — leis ordinárias, complementares, decretos e instruções normativas — não torna a chamada carga tributária indireta, que é quanto o cidadão gasta para pagar imposto, muito alta?
Everardo Maciel — Isso se chama custo de conformidade. Nos Estados Unidos, representa 15% dos custos tributários diretos. No Brasil, não há nenhuma avaliação nesse sentido. Aqui, os grandes custos tributários indiretos são as discussões judiciais. O custo da burocracia para pagar imposto é praticamente nulo. O Brasil tem um sistema mais avançado no mundo de transmissão de declarações de impostos. Tudo aqui já é por meio eletrônico. O que existe é um excesso de obrigações acessórias. No Brasil, a batalha que se trava no dia a dia é contra a burocracia. Uma empresa tem de ser inscrita no fisco federal, estadual e municipal. Isso é um absurdo! Inscrição é inscrição. Tudo isso vira problema e vai parar no Judiciário. Como tudo está na Constituição, acaba nas mãos do Supremo Tribunal Federal. Há um protagonismo judicial e isso é grave na política tributária do país.
ConJur — Isso não causa insegurança jurídica para a política tributária?
Everardo Maciel — Sem dúvida nenhuma. Ainda mais porque há o controle difuso das normas, que começa na primeira instância e chega até o Supremo. Isso desequilibra a relação entre os contribuintes na medida em que uns ficam livres de pagar o tributos e outros, não. E, ainda assim, são apresentadas Emendas Constitucionais para complicar ainda mais. Por exemplo, é um absurdo reduzir alíquota de contribuição por meio de mudança na Constituição. Isso é matéria de Instrução Normativa.
ConJur — O senhor é a favor da modulação dos efeitos das decisões do Supremo?
Everardo Maciel — Cada caso é um caso.
ConJur — Por exemplo, na questão da Cofins para sociedades de profissões regulamentadas. Alguns contribuintes deixaram de pagar porque o STJ tinha Súmula que validava a isenção. O Supremo mudou esse entendimento, mas não modulou. Era um caso de aplicar a modulação?
Everardo Maciel — Não. É absolutamente claro que a isenção havia sido revogada. O que houve foi uma ousadia de pessoas que apostaram em uma isenção sem nexo algum. Quem aposta pode perder ou ganhar.
ConJur — Uma das maiores disputas tributárias no Supremo hoje é se o ICMS faz parte da base da cálculo da Cofins. Afinal, um tributo pode ser calculado em cima de outro?
Everardo Maciel — Essa discussão fica no plano da especulação porque só pode ser especulação falar que um tributo não pode fazer parte da base de cálculo de outro. Excluir o ICMS do cálculo da Cofins teria uma repercussão inimaginável. Se for decidido isso, nenhum tributo mais poderá incidir no cálculo de outro. Para compensar a perda dos cofres públicos, o legislador teria de aumentar as alíquotas. E tudo isso para que? Não consigo nem imaginar o fundamento dessa tese que está sendo defendida. Se o Supremo acolher, a destruição será atômica. Significará reestruturar o sistema que está vigente desde 1946. Vivemos em um ambiente de ameaça permanente, aí o porquê da frase de que, no Brasil, ninguém consegue prever o passado.
ConJur — Insisto: a modulação das decisões não resolve esse problema? Não torna o passado previsível?
Everardo Maciel — Não. A modulação tem previsão constitucional, mas tem de ser analisada situação por situação. Um exemplo foi a decadência de prescrição em relação à contribuição previdenciária. Nesse caso, aplicou-se a modulação corretamente, sem causar dano nenhum. Modulação faz sentido quando temos tese desse sentido, que não afeta alguém ou algum setor.
ConJur — Se o Supremo tirar o ICMS da base de cálculo da Cofins, a modulação deve ser aplicada
Everardo Maciel — Deve. Caso contrário, será necessário refazer o mundo dos tributos no Brasil.
ConJur — Com a crise financeira mundial, o governo procurou incentivar o consumo reduzindo a tributação. Como o senhor vê esses estímulos?
Everardo Maciel — É muito perigoso porque é muito vulnerável à prática de lobby. Ofende o princípio da neutralidade tributária. Não sou totalmente contra, mas falo da necessidade de parcimônia. Por exemplo, a redução da alíquota do IPI para os carros flex. O governo diz que está ajudando a ecologia com isso. Não é verdade. É preciso também ver outra questão: as estruturas brasileiras estão preparadas para receber uma frota ainda maior de carro? O país já está todo congestionado. Outra questão é a escolha de qual produto vai ser beneficiado: por que o carro, e não as motos ou as bicicletas? É um exercício político perigoso.
ConJur — Muitos municípios estão indo ao Judiciário reclamar que a redução das alíquotas reduziu o repasse a que eles têm direito. Têm alguma chance de a Justiça mandar a União compensar essa perda de arrecadação municipal?
Everardo Maciel — É pouco provável. O imposto é federal. Não é receita própria do município. As prefeituras só passam a ter direito quando o imposto é recolhido.
ConJur — Essa diminuição do repasse não prejudica consideravelmente os municípios?
Everardo Maciel — De algum modo, sim, particularmente os municípios pequenos. Esse é um erro decorrente desse modelo federativo que temos. O IPI, como política fiscal, fica engessado porque qualquer alteração vai repercutir também nos estados e municípios.
ConJur — Qual é a reforma tributária ideal para o Brasil?
Everardo Maciel — Não existe uma reforma tributária ideal. O que existem são problemas que precisam ser resolvidos. A complexidade do ICMS, por exemplo. PIS e Cofins também precisam de uma mudança radical, mas por meio de lei ordinária. Até 2002, as duas contribuições não tinham problemas, mas a partir daí, resolveu-se que o sistema não seria mais cumulativo e esqueceu-se que 93% dos contribuintes optam pelo sistema cumulativo na tributação da renda. A mudança tornou as duas contribuições muito complexas. Viraram um tributo que nem o contribuinte e nem o fisco sabem como é. O Simples Nacional também precisa de uma simplificação. Outra questão é a tributação sobre a folha de salário: estimula o trabalho informal?
ConJur — São frequentes no país programas de parcelamento e de anistia de débitos tributários. Isso não é antipedagógico?
Everardo Maciel — É um equívoco os parcelamentos virem acompanhados de anistia. O contribuinte que pagou tudo correto fica numa situação desfavorável diante daquele que não pagou, mas foi anistiado. Programas de parcelamento deveriam levar em conta a capacidade de pagamento. As regras têm de ser mais firmes e duradoras. Deveriam estar no Código Tributário Nacional para oferecer conforto a quem quer cumprir a norma.
ConJur — O senhor é a favor de transação em matéria tributária?
Everardo Maciel — Ela já existe e é feita por lei. A transação deve ser feita caso a caso. Não terá sucesso se for para tratar de tema genérico.
Osvaldo Aires Bade Comentários Bem Roubados na
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