"Por Olavo de Carvalho"
O Globo, 25 de novembro
de 2000
Vocês não sabem o que
perderam. Não somente a conferência de René Girard na UniverCidade, dia 17, foi
um esplêndido acontecimento intelectual, mas também raramente uma exposição tão
límpida foi ilustrada, no ato, por um exemplo tão vivo:
mal o autor de "O
bode expiatório" tinha acabado de dizer que as ondas de violência coletiva
contra inocentes são precedidas e legitimadas por imputações criminais
absurdas, quando um dos debatedores convidados, o dr. Leonardo Boff, subiu ao
púlpito para concitar as massas à vingança contra os adeptos da economia de
mercado, acusando-os não só de matar pessoas, mas de fazê-lo numa média de...
cem mil vítimas por dia.
Com essa cifra, o dr. Boff garantiu seu lugar no Livro
Guinness das Estatísticas Caluniosas e superou, ao menos em idéia, os
oficiantes de rituais primitivos analisados no livro do grande antropólogo,
cuja fama aliás ele vem parasitando já há alguns anos em proveito desse vasto
discurso de inculpação delirante que é a "teologia da libertação".
Mas nem por isso
devemos fazer dele o bode expiatório da devastação mental brasileira, da qual
ele não é pai e sim apenas filho, e tanto mais inocente porque não tem a menor
consciência de que é a cara da mamãe.
No entanto, por essas e
outras, a visita de Girard (ele aqui) tornou-se uma magnífica oportunidade perdida. Ele é
chamado o "Darwin das ciências humanas" por ter elucidado o papel
fundamental que a violência inculpatória desempenha na organização das sociedades.
Segundo sua teoria (magistralmente resumida no depoimento a João Cezar de
Castro Rocha e Pierpaolo Antonello, que a Topbooks acaba de publicar sob o
título "Um longo argumento do princípio ao fim"), o desejo humano, ao
contrário dos apetites animais, não se dirige a bens ou prazeres do mundo
objetivo, mas à imitação invejosa de prestígios consagrados. Não é desejo
espontâneo, mas desejo copiado, mimético.
Daí a universal frustração, que
alimenta conflitos sem fim. Quando a tensão das invejas acumuladas chega ao
insuportável, a guerra de todos contra todos é adiada mediante o sacrifício de
bodes expiatórios, que restabelece o senso ilusório da união coletiva até a
próxima crise.
Amparado em documentação esmagadora, Girard demonstra que uma
mudança radical aconteceu na passagem das antigas mitologias para o universo
bíblico, onde a justiça mitológica é desmascarada e se proclama a inocência das
vítimas sacrificiais. Mas, passados tantos milênios, a Bíblia ainda é uma
novidade indigerível, e a todo momento o autêntico senso de justiça cede o
passo a restaurações insanas da violência mitológica.
À luz dessa descoberta,
nenhum intelectual sério pode exortar as massas a "fazer justiça" sem
tornar-se cúmplice de uma farsa maligna, pois as massas, por definição, não
fazem justiça, apenas descarregam sobre bodes expiatórios as tensões acumuladas
do desejo mimético. A visita de René Girard (v. sua reveladora entrevista no
site http://www.oindividuo.com)
teria sido uma ótima oportunidade para a nossa classe letrada meditar as
contradições do esforço "ético" nacional, que ilustram ainda melhor
que o dr. Boff a veracidade da teoria mimética.
Só para dar um exemplo:
numa época em que os assassinos espalham o terror nas ruas, a máfia dos
detentos domina o sistema carcerário e os narcoguerrilheiros avançam fronteira
a dentro, a mobilização maciça de entusiasmo belicoso para a caçada a um
funcionário público que desviou dinheiro de uma construção é uma obscena operação
diversionista, sem outro sentido senão o de fabricar uma união nacional postiça
mediante o sacrifício ritual de um salafrário repelente mas pacífico, incapaz
de atirar num cão sarnento com uma espingarda de chumbinho.
É que o salafrário,
miúdo na escala da truculência, é grande, é gigante, é macrocósmico como
símbolo apto a condensar ódios e frustrações da massa. O policial que arrisca a
vida trocando tiros com quadrilheiros é um emblema da nossa miséria, da nossa
violência. Por isso os primeiros a cobrar sua proteção são também os primeiros
a renegá-lo, a escondê-lo, a exorcisá-lo, igualando-o aos bandidos que
persegue. Um senador que, do alto da tribuna, cercado de seguranças, sem o
menor risco para a sua pessoa, verbera com oratória balofa a invejada opulência
dos "colarinhos brancos" iguais a ele próprio, este sim é um herói,
um tribuno do povo, a convocar a maré montante da vingança redentora.
O criminoso de
colarinho branco não é odioso pelo crime, mas pelo colarinho. Nas notícias, nos
comentários, nas conversas de rua que o condenam, a indignação geral enfatiza
menos a ilegalidade específica de seus atos, detalhe técnico complicado e
tedioso, do que a descrição espetacular de seus bens acumulados, de suas
mansões cinematográficas, de seus carros importados, de suas noitadas em
cassinos.
Descrição que, sempre feita naquele tom perfidamente ambíguo, entre o
escândalo e o deleite, injeta na alma do povo a peçonhenta indistinção entre o
anseio de moralidade e o puro rancor invejoso, atiçando o fogo das culpas
recalcadas para precipitar a grande descarga ritual. O estilo é o homem: a
moral que nossos líderes estão ensinando ao povo não é uma moral de homens
honestos -- é uma moral de ladrões invejosos, revoltados contra o concorrente
que roubou mais.
A degradação do senso
ético nacional pela inversão de prioridades e pela manipulação do rancor
mimético disfarçado em bom-mocismo é, ela própria, a causa psicológica
principal dos alucinantes progressos da criminalidade ao longo de doze anos de
pretensa "restauração da ética". Meditar a lição de Girard poderia
nos curar disso. Mas preferimos dar ouvidos ao dr. Boff.
Osvaldo Aires Bade Comentários Bem Roubados na
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