Um homem. Uma mulher. Só amigos?
Será que homens e mulheres podem ser amigos? Nós nos fazemos essa pergunta há
muito tempo e a resposta costuma ser não. O filme "Harry & Sally - Feitos um
Para o Outro" oferece o cenário clássico. O problema, como assegura a famosa
explicação de Harry, é que "a parte do sexo sempre estraga tudo". Pessoas
heterossexuais do sexo oposto podem afirmar ser apenas amigos, continua a
mensagem, mas tenha certeza de que - piscadela e cutucada - está rolando mais
alguma coisa. A cultura popular reforça essa noção sem parar. Filme atrás de
filme, série depois de série, a trama é a mesma. O que começa como amizade (Ross
e Rachel, Monica e Chandler) termina na cama.
Existe uma história aqui, e, de forma surpreendente, ela é política. A
amizade entre os sexos era mais ou menos desconhecida na sociedade tradicional.
Homens e mulheres ocupavam esferas diferentes e as mulheres eram vistas como
inferiores em todos os casos. Algumas amizades epistolares entre seguidores da
vida monástica, alguns relacionamentos na literatura e círculos da corte, mas
tirando isso, a amizade entre os sexos era impensável na sociedade ocidental e
continua sendo em muitas culturas.
Então chegou o feminismo - mais especificamente, Mary Wollstonecraft, a mãe
do feminismo, no final do século do século XVIII. Wollstonecraft tinha plena
ciência dos relacionamentos platônicos, que poderiam terminar com facilidade, a
seu ver, em problemas. (Ela tinha um filho fora do casamento.) Porém, acreditava
que a amizade, "o mais sublime dos afetos", deveria ser a mola mestra do
casamento.
Na década de 1890, quando o feminismo emergiu das salas de estar e dos
comitês refinados para se tornar um movimento radical de massas (o termo
"feminismo" foi cunhado em 1895), a amizade reapareceu como demanda política.
Era o tempo da "Nova Mulher", retratada na ficção e interminavelmente debatida
na imprensa.
A Nova Mulher era inteligente, lida, resoluta, idealista, anticonvencional e
sem papas na língua. Para ela, relacionamentos com homens, com ou sem sexo,
tinham de envolver camaradagem mental, liberdade de escolha, igualdade e
respeito mútuo. Em resumo, deviam ser amizades. Da mesma forma que o voto
representa a visão do futuro político do feminismo, a amizade representava sua
visão do futuro pessoal, o termo central do contrato sexual renegociado.
Sem dúvida, algo mais fácil de falar do que de fazer. Contudo, a noção da
amizade como origem dos relacionamentos românticos começou a se infiltrar na
cultura. Os termos "boyfriend" (namorado ou amigo) e "girlfriend" (namorada ou
amiga) também começaram a surgir na década de 1890.
Agora, julgamos as palavras como naturais, mas pense no que elas implicam e
que ideia inovadora representavam: que os parceiros românticos compartilham mais
do que paixão erótica, que o companheirismo e igualdade integram o
relacionamento. Um "boyfriend" é amigo e amante. Quanto a marido e esposa, o
ideal de Wollstonecraft há muito se tornara um clichê. Quem não pensa no cônjuge
_ou afirma pensar assim ou é o que deseja - como seu melhor amigo?
Assim, a amizade agora faz parte do que chamamos de amor. Mesmo assim, isso
não nos leva a relacionamentos platônicos. Para tanto, precisávamos de outra
onda feminista, a que começou nos anos 60. A amizade não fazia parte da demanda
desta vez, mas as coisas exigidas - direitos e oportunidades iguais em todas as
esferas - criaram as condições para tanto. Foi somente quando os sexos se
combinaram em termos iguais e familiares na escola, trabalho e nos espaços
sociais existentes entre eles - somente quando se tornou normal e até entediante
ver um membro do sexo oposto na mesa ao lado - que as amizades platônicas se
tornaram uma parte comum da vida.
E foi exatamente isso o que aconteceu.
As amizades com membros do sexo oposto se tornaram uma parte importante da
minha vida desde que cursei o colegial no final dos anos 70 e não creio, nem de
longe, ser o único. Avalie a partir de sua própria experiência, mas enquanto
olho ao redor, não penso que amizades platônicas sejam raras ou merecedoras de
piscadelas e cutucadas. E é por isso que quase não se escuta mais esse termo. As
amizades platônicas agora são simplesmente amizades. Mas o sexo não estraga
tudo? Às vezes, sem dúvida. É mais complicado para os jovens, é claro - com
tantos hormônios e tantos colegas solteiros. Na verdade, uma das soluções mais
comuns ao dilema de Harry é fazer sexo e continuarem amigos. Se o sexo
atrapalhar, a resposta costuma ser simplesmente tirá-lo da equação.
Só que ele nem sempre atrapalha. Talvez vocês não se sintam atraídos. Talvez
saibam que nunca daria certo, assim não vale a pena estragar a amizade. Talvez
não seja nada disso.
Assim, se agora é comum que homens e mulheres sejam amigos, por que o vemos
tão raramente na cultura popular? Em parte por ser um problema de narrativa.
Amizade não é galanteio. Não tem começo, meio e fim. Histórias sobre amizades de
qualquer tipo são relativamente raras, principalmente em função do espaço enorme
que as relações ocupam em nossas vidas. E, é claro, não são sexy. Junte um homem
e uma mulher num filme ou romance e vamos esperar que surjam faíscas. E não se
trata apenas de um problema de narrativa ou de Hollywood.
Em nossa cultura, temos um problema com qualquer amor que não seja baseado em
sexo ou sangue. Nós compreendemos os relacionamentos românticos e compreendemos
a família, e parece que é só isso o que compreendemos.
Nós temos problemas com a tutela, o amor assimétrico entre mestre a aprendiz,
professor e estudante, guia e guiado; temos problemas com a camaradagem, o
vínculo nascido de trabalho intenso em comum; e temos problemas com a amizade,
ao menos a íntima. Quando imaginamos esses relacionamentos, parece que temos de
sexualizá-los.
Amizades íntimas entre membros do mesmo sexo, afinal, sempre são suspeitas.
Até mesmo a Oprah precisou defender seu relacionamento com Gayle King e, quanto
a homens e homens, pode esquecer.
Não consigo pensar em outra área das nossas vidas nas quais exista uma
distância tão grande entre o que fazemos e o que nossa cultura diz que fazemos.
Porém, quem sabe, as coisas estejam começando a mudar. Os jovens, tendo crescido
com o movimento dos direitos gays e, em muitos casos, frequentado faculdades com
alojamentos mistos, estão abertos a uma gama mais ampla de possibilidade
emocional.
A amizade entre os sexos pode ter deixado de ser uma questão política, mas é
uma questão de liberação: a liberdade de amar quem quisermos do jeito que
quisermos. Talvez seja a hora de todos nós a tirarmos do armário.
(William Deresiewicz é ensaísta, crítico e autor de "A Jane Austen
Education".)
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