EDUCAÇÃO/FILOSOFIA - Kant, Schopenhauer e Machado
1. Da Vontade Sobre o Mundo
Não estou entre aqueles que acha que precisamos de um “eu” substancial para narrarmos a nossa própria história. Mas, sei bem que o modernos não viram outra maneira de fazer isso senão por meio da caracterização desse eu, sob o rótulo específico de sujeito moderno. No âmbito ético-moral esse sujeito é a pessoa. No campo político, o cidadão. Resumindo ao máximo, eis aí a modernidade e o eu entrelaçados: os tempos modernos podem ser descritos como o cume de um processo de “subjetivação do mundo”, em que cada vez mais elementos do mundo passam a contar como elementos “internos”, propriedades de uma subjetividade.
Essa modernidade foi retratada por Kant, ele próprio inserido nela, como a época da Ilustração ou do Iluminismo. Para ele, esse termo expressava bem mais que um movimento restrito de filósofos franceses produtores de livros, frequentadores de cortes de “déspostas esclarecidos” e organizadores da célebre Enciclopédia. Lumière para os franceses, Enlightenment para os britânicos, Aufklärung para os germânicos e, para nós, na esteira do Marquês de Pombal, a Ilustração ou o Iluminismo, denotaram o século XVIII como o “século da Luzes” ou o “século da razão”. Que razão? Em boa medida, a razão desenhada por Kant ou, melhor dizendo, o sujeito por ele construído.
Certamente, para boa parte dos filósofos, a razão do século XVIII era uma razão finita, isto é, uma razão tomada como faculdade humana. Nas mãos de Kant, ao falar da ética e, portanto, da política, tratava-se de uma vontade racional – uma vontade racional completamente livre. Mais que quaquer outro filósofo, Kant foi quem colocou as faculdades de conhecimento atreladas a um misto de empirismo e racionalismo, enquanto que deixou as faculdades do querer e agir segundo a diretriz da vontade racional livre, autodeterminante. Foi assim que Kant criou um dos mais célebres modelos de sujeito moderno, participando com isso do movimento cultural cujo início podemos até considerar transhistórico (1), o movimento da subjetivação do mundo.
Alguns filósofos gostam de colocar a subjetivação do mundo como o que começou com Sócrates (“Conhece-te a ti mesmo”) enquanto que outros preferem localizá-lo em Santo Agostinho (“Eu quero”) ou coincindo com o início da épóca moderna, com Descartes (“Eu penso”). Outros, considerando tudo isso, acham mesmo que o ideal é só falar em subjetividade propriamente dita quando o Iluminismo ou Ilustração dá o seu fruto, completamente consciente do movimento histórico no qual está inserido, que é Kant. Ele foi quem elaborou o sujeito de um modo possível a ser bem aproveitado pelo liberalismo, o grande ideário que conquistou a todos nós na construção de nossos regimes republicanos ou de monarquias constitucionais, e que alguns articularam com a democracia. Ele atrelou a noção de indivíduo à noção de sujeito. Insistiu em dar à vontade racional uma cadeira no centro do eu, caracterizando o sujeito de um modo que, até então, não havia sido configurado segundo roupagem tão completa. O sujeito passou então a ser, daí em diante, definido para além de noções gramaticais, como o indivíduo autônomo. Isso fez Kant ligar o Iluminismo ao sujeito, do mesmo modo que este já parecia ter tudo a ver com o Humanismo.
Em Kant, o século XVIII passou a ser qualificado antes como a era do indivíduo esclarecido (e, portanto, autônomo) que como a simples “era da razão”. Assim, em Kant, o Iluminismo foi pensado não só como movimento histórico, mas como movimento inerentemente filosófico. Kant quase que igualou o aufklärer ao individuo moderno esclarecido – que seria forjado pela educação e que teria de funcionar na vida moral e política. Kant ficou tentando em colocar como ideal do eu psicológico o eu universal que ele criou como eu transcendental. Desse modo, cada indivíduo arrebatado pelo Iluminismo, pensando por si mesmo, distanciando-se da menoridade, pela sua vontade livre, iria agir como deveriam agir todos os homens do futuro. Nesse futuro reinaria a “paz perpétua” e um completo “estado cosmolita” congregador de toda a humanidade.
2. … ao mundo sob a Vontade.
O século XIX considerou-se tão imerso na modernidade quanto o XVIII. Mas, em parte, não agiu assim por uma simples continuidade do modo de pensar deste. Vários pensadores do XIX viram no sujeito kantiano aquilo que o filósofo americano dos dias atuais, Michel Sandel, chama de um “eu desonerado”, isto é, um eu muito menos atrelado ao mundo do que o necessário para uma boa narrativa. Ao eu kantiano pareceu faltar um elo mais espesso com a história, segundo a avaliação de Hegel. E Schopenhauer, por sua vez, talvez repensando toda a tradição anterior a Kant, resolveu munir o eu também de um corpo.
Quando Schopenhauer deu um corpo ao seu sujeito, ele se deparou com a necessidade de complexificar a ligação do eu com o mundo empírico, bem mais do que jamais sonhou Kant em levar adiante. Veio-lhe a idéia, então, de fazer da vontade não mais um núcleo da razão, mas uma força do corpo. Todavia, só isso não resolveria o seu problema. Mantido o esquema dual kantiano, o mundo permaneceria solto, de um lado, e o eu, então de outro lado, ainda permaneceria desonerado, um tanto estranho ao mundo. Essa estranheza do eu para com o mundo, como se o eu tudo pudesse, foi o que o movimento do Romantismo criticou no movimento do Iluminismo.
Se o Iluminismo marcou o XVIII, foi o Romantismo que praticamente comandou o século XIX. O resultado filosófico do Romantismo, trocando em miúdos, foi o de onerar o eu criando no mundo alguma coisa que pudesse lhe dizer respeito, algo com o qual ele poderia ou se identificar como parte ou como pedaço de um plug. Eu e mundo não poderiam se estranhar. O indivíduo humano não poderia agir como sujeito de um modo tão voluntarista, digamos assim, como em Kant. Deveria se apresentar limitado pelas travas de alguma coisa que não lhe era estranha. Hegel foi quem hipostasiou a razão, inserindo-a no mundo e na história. Assim, se o homem ideal, funcionando enquanto indivíduo-sujeito, tinha faculdades racionais, isso não ocorreria por uma sua desvinculação do mundo mas, ao contrário, exatamente por sua razão fazer parte da razão do mundo. Hegel hipostasiou o próprio sujeito. Chamou de sujeito o Espírito. Não o espírito individual humano, mas a história e a cultura tomadas de maneira abstrata. O mundo funcionaria como um sujeito.
Schopenhauer fez algo análogo, mas hipostasiou uma função que lhe impressionou mais que a razão. Ele seguiu o núcleo do pensamento kantiano. Kant havia dado liberdade à vontade. Schopenhauer, então, fez dela seu elemento mundano. Ele construiu uma metafísica da vontade. O mundo não funcionaria como a razão e, sim, como a vontade. Todavia, esta, não seria a vontade racional de Kant e, sim, a vontade como faculdade geral do querer – de todos os quereres. Todo o mundo, das pedras aos animais passando pelo homem teriam vontades que se manifestariam segundo um impulso contido no mundo. Esse impulso seria a Vontade (com V), algo equivalente à Razão de Hegel (com R), mas, ao contrário desta, uma força desgovernada, sem lei. A vontade humana, então, nada seria senão uma parte dessa grande vontade mundana.
Assim, Schopenhauer manteve o eu individual, finito, como potencial sujeito. Mas, algo com a força da iniciativa do sujeito, ganhou o mundo – a Vontade. Essa força não agiria no mundo dando-lhe o funcionamento de um relógio, como a Razão, mas lhe daria a força de um ciclone eterno. O mundo seria um caos, não um cosmos. O mundo seria um cosmos na sua representação. Mas, metafisicamente falando, em sua essencia, seria comandado por um querer nada racional ou razoável. Os homens, então, ao se tornarem sujeitos, ao tentarem alcançar a instância subjetiva, não teriam que fazer somente o esforço de se tornarem autônomos, de abandonarem a menoridade. Teriam, também, uma vez maiores, de continuar uma luta contínua, uma vez que o eu individual, finito, estaria imerso em vagalhões de acontecimentos impulsionados pela Vontade enquanto essência metafísica do mundo.
Foi muito mais Schopenhauer, e não Kant, que o nosso Machado de Assis, aqui no Rio de Janeiro, resolveu ler e colocar como seu filósofo predileto. Assim fazendo, Machado, ele próprio, tornou-se nosso melhor filósofo.
Os contos de Machado são um exemplo da vida sob o reino da Vontade. Dois deles são peças fundamentais no sentido de poderem ser lidos como aquilo que Schopenhauer leria com o máximo de prazer, na tarefa de remodelar dos elementos do kantismo, a saber, o eu enquanto identidade e o eu como portador de liberdade. Esses contos são, respectivamente, “O espelho” e “Pai contra mãe”.
No primeiro, o herói se retira para um lugar solitário e, após muito tentar, percebe que não tem lá dramas interiores o suficiente para manter sua subjetividade intacta. Não é esse, talvez, o grande problema da subjetividade kantiana? Kant complexificou a sua noção de sujeito. Dotou seu eu de vários elementos. No entanto, ao dar à sua vontade a autonomia por meio do expediente de fazer ela própria se dar uma lei formal para cumprir, eliminou aquilo que sempre alimentou qualquer subjetividade: o drama interior. Assim, Kant, ao complexificar o eu, na verdade, o esvaziou. Um eu vazio como o do herói de “O espelho” não poderia fazer outra coisa para se reconhecer que não identificar-se com o seu exterior. Seu casaco de militar devolveu-lhe a identidade. Seu interior, que deveria ser o elemento identitário, mostrou-se tão vazio quanto o de uma armadura oca.
No segundo, o herói que exerce sua liberdade no trabalho de tirar a liberdade de outros, dado que é um caçador de escravos fugidos, se vê também ele pouco livre. A pobreza o faz ser um caçador de escravos a todo o custo. Aos poucos, o prisioneiro é ele. Tornou-se o prisioneiro do destino caótico, que lhe ordena que se ponha a caçar escravos não mais como profissão, mas como sina e como caminho para a crueldade. Assim, a liberdade tem pouco a ver com a liberdade, ao menos com a liberdade kantiana. Pois, se há um eu não desonerado a ser mostrado trata-se do eu do herói de Machado. Ao final, ele nem mais é um ser humano, que segundo Kant deveria ser digno e tratar outros com dignidade, mas sim uma fera, uma besta que luta para trazer sua presa para casa, para alimentar os filhos com carne.
Os personagens schopenhaurianos não estão como o aufklärer no mundo, mudando-o, revolucionando- ou reformando-o. Estão imersos em teias que mostram que o eu é vazio de identidade e de liberdade. A Vontade marioneta os heróis. Eles não deixam de ser agentes, mas é difícil dizer que são sujeitos, se mantemos a noção kantiana de sujeito.
Macha do Assis
Diante de Machado, penso que a saída pós-moderna de não mais ir buscar um eu metafísico ou essencial para descrever nossa história tornou-se uma boa pedida. Talvez Machado tenha sido nosso grande precursor do pósmodernismo. Poderíamos alinhá-lo com Rorty ou Foucault ou Derrida, mas de um modo até melhor, mais gostoso de ler.
2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
(1) Nós filósofos adoramos colocar marcos históricos em pontos da história que os historiadores jamais colocariam. Os filósofos são aqueles cuja tarefa é a de levar adiante o que é o pecado do historiador, ou seja, o anacronismo. Nenhum filósofo inteligente pode entrar no céu do historiador
Olimpia Pinheiro
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