BRINCAR NO HOSPITAL
ESTRATÉGIA DE ENFRENTAMENTO DA HOSPITALIZAÇÃO INFANTIL
Estudos indicam que a hospitalização pode afetar o desenvolvimento da criança, interferindo na qualidade de vida. Para lidar com essa situação, o brincar tem funcionado como estratégia de enfrentamento. Procurando-se avaliar a importância dada ao brincar pela criança e caracterizar atividades lúdicas possíveis no hospital, 28 crianças hospitalizadas com câncer (6-12 anos), em Vitória/ES, foram entrevistadas e responderam a um instrumento especialmente elaborado (AEH - Avaliação das Estratégias de Enfrentamento da Hospitalização – Conjunto B: Brincar no hospital), contendo 20 desenhos de brinquedos e brincadeiras, classificados em jogos de Exercícios, Simbólicos, de Acoplagem, de Regras e Atividades Diversas. 78,6% das crianças relataram que gostariam de brincar no hospital, o que é justificado principalmente pela sua função lúdica, na companhia de outras crianças internadas. Não houve diferenças significativas nas escolhas entre as categorias de brincadeiras. O instrumento mostrou que o brincar pode ser um recurso adequado para a adaptação da criança hospitalizada, permitindo personalizar a intervenção.
A revisão bibliográfica na área de câncer infantil constatou que, entre os aspectos mais freqüentemente abordados nos trabalhos, encontra-se a experiência de pacientes no manejo de procedimentos médicos invasivos, considerando-se ser este um importante estressor presente no tratamento do câncer infantil (Bertazzi & Pandini, 1992; Valle & Françoso, 1992; Garcia, 1996; Valle, 1997; Costa Jr., 1999 e Santos, 2000, Motta & Enumo, 2002, em nível nacional, e Van Dongen-Melman & Sanders-Woudstra, 1986; Redd, Jacobsen, Die-Trill, Dermatis, McEvoy & Holland, 1987; Fegley, 1988; Manne, Bakeman, Jacobsen & Redd, 1993; e Chen, Zeltzer, Craske & Katz, 2000, no exterior). Entre estes trabalhos, encontram-se artigos baseados em relatos de experiência, como o de Garcia (1996), ressaltando a importância de intervenções psicossociais que minimizem a ansiedade, o medo e a angústia, tanto das crianças quanto dos familiares e profissionais de saúde frente aos procedimentos invasivos. Estudos experimentais, como os de Redd e cols. (1987), Fegley (1988) e Manne e cols. (1993), também abordam essa problemática. Nestes estudos, são experimentadas técnicas como a distração e a busca de informações, para auxiliar a criança no enfrentamento de tais situações aversivas.
O câncer, por ser uma doença crônica, também expõe a criança e seus familiares a outras situações estressantes, que se somam à possibilidade de internação. De acordo com Eiser (1992), a criança com doença crônica, que necessita de visitas regulares ao hospital, pode encontrar dificuldades e obstáculos na sua vida social e familiar, como, por exemplo, a restrição do convívio social, ausências escolares freqüentes e aumento da angústia e tensão familiares. Acrescenta-se a esse quadro a necessidade de se adaptar aos novos horários, confiar em pessoas até então desconhecidas, receber injeções e outros tipos de medicação, ter que permanecer em um quarto, ser privada de atividades de brincar - situações estas que não faziam parte da vida da criança e que caracterizam uma hospitalização.
Essas implicações da hospitalização descritas são compartilhadas por outros autores, que relatam os prejuízos trazidos por uma hospitalização prolongada e a necessidade e possibilidade de se desenvolverem trabalhos que promovam a humanização da instituição hospitalar, como Chiattone (1984); Guimarães (1988); Barbosa, Fernandes e Serafim (1991); Zannon (1991); Saggese e Maciel (1996); Mello, Goulart, Ew, Moreira e Sperb (1999) e Ceccim e Fonseca (2000), em nível nacional, e Siegel (1983) e Méndez, Ortigosa e Pedroche (1996) no exterior.
Estudando o desenvolvimento psicológico da criança, Zannon (1991) discute aspectos da intervenção comportamental no ambiente hospitalar em nosso país, com destaque para a despersonalização (grifo da autora) dos pacientes, decorrente da cultura hospitalar, que pode ser caracterizada pelo reforçamento (recompensa) de comportamentos deprimidos. Dessa forma, parece inevitável encontrar no hospital crianças com depressão. É fundamental, portanto, criar mecanismos para promover um ambiente que não reforce esses comportamentos e ajude a criança a enfrentar as dificuldades da hospitalização e da doença.
Entre as possíveis estratégias utilizadas por crianças para enfrentar condições estressantes encontra-se o brincar, recurso utilizado tanto pela criança como pelos profissionais do hospital para lidarem com as adversidades da hospitalização.
A importância do brincar na situação hospitalar ganhou relevância social principalmente a partir do trabalho do médico Patch Adams (1999), nos Estados Unidos da América, cuja história pessoal foi popularizada através de filme2.
Revendo a bibliografia nacional e internacional sobre a introdução do brincar na instituição hospitalar, verifica-se que esta temática vem ocupando um espaço significante no estudo da hospitalização infantil, trazendo questões relacionadas à sua importância no processo de humanização hospitalar, tanto no exterior (Sherlock, 1988; Lindquist, 1993; Lindquist, 1996 e Adams, 1998) como no Brasil (Chiattone, 1984; Duarte, Muller, Bruno & Duarte, 1987; Guimarães, 1988; Pinheiro & Lopes, 1993; Saggese & Maciel, 1996; Masetti, 1997; Françani, Zilioli, Silva, Sant'Ana & Lima, 1998; Mello & cols., 1999 e Goulart & Morais, 2000). Entre estes trabalhos, verificam-se particularidades no que se refere ao direcionamento que é dado ao brincar. No trabalho de Lindquist (1993), por exemplo, o brinquedo é utilizado como recurso capaz de proporcionar às crianças atividades estimulantes e divertidas, mas que tragam calma e segurança.
O brinquedo também pode ser utilizado de forma específica, por meio do palhaço, com a função de alegrar o ambiente e amenizar as sensações desagradáveis da hospitalização, humanizando o contexto hospitalar. Masetti (1997) conta a experiência positiva do grupo "Doutores da Alegria" na tarefa de levar o palhaço até as crianças hospitalizadas. Seguindo este mesmo caminho, Françani e cols. (1998) relatam as transformações diárias que a introdução de palhaços por meio da "Companhia do Riso" trouxe ao contexto hospitalar, tornando-o mais descontraído.
Em seu trabalho sobre a utilização do brincar em enfermaria pediátrica, Saggese e Maciel (1996) discutem a questão: “Brincar - recreação ou instrumento terapêutico?”, ressaltando que os programas hospitalares que utilizam a recreação visam geralmente à ocupação de tempo ocioso. Propõem, porém, que a atividade lúdica, nesse contexto, seja olhada como instrumento terapêutico a serviço da intervenção médica.
Em outros tipos de intervenção psicológica, a exemplo das técnicas de Modificação de Comportamento, que utilizam estratégias para redução do estresse induzido pela hospitalização, é possível identificar componentes lúdicos como estímulos para uma adaptação positiva. O “ensaio comportamental”, por exemplo, consiste na oferta de materiais hospitalares de brinquedo para que a criança possa, ao manipular o brinquedo, expressar seus temores e ansiedades frente aos instrumentos que serão utilizados com ela (Méndez e cols., 1996). Analisando o estudo desses autores espanhóis, percebe-se que o caráter lúdico pode estar presente também nas técnicas de imaginação/distração, quando a criança é solicitada a imaginar e fantasiar uma história com um herói que ela admire, para que este possa ajudá-la a enfrentar com segurança a ansiedade provocada pela situação de hospitalização.
A inclusão de brincadeiras, visando ao relaxamento da criança para a administração de quimioterapia, foi sugerida por Löhr (1998) em seu trabalho sobre a intervenção psicológica em crianças com câncer em tratamento em dois hospitais de Curitiba, PR. Nesse mesmo trabalho, a autora coloca a atividade lúdica como uma estratégia cognitivo-comportamental, por meio da qual a criança com câncer pode obter um certo controle sobre a situação a ser enfrentada. Fazendo referência à revisão realizada por Ellis e Spanos em 1994, Löhr (1998) afirma: “Para realizar tal controle, uma gama de atividades podem ser benéficas, dentre elas brincadeiras estruturadas, pintar desenhos, usar das técnicas de relaxamento, da distração, da construção de imagens indutoras de relaxamento e hipnose” (p.56).
Relatos de experiências de intervenção têm mostrado também que a oportunidade de brincar no hospital tem efeitos positivos (recrear, amenizar o sofrimento hospitalar, favorecer a comunicação e a expressão dos sentimentos das crianças, entre outros) sobre a criança hospitalizada com câncer ou outras doenças (Oliveira & Guimarães, 1979; Sherlock, 1988; Lindquist, 1993; Saggese & Maciel, 1996; Adams, 1998; Françani e cols., 1998; Mello e cols., 1999).
Diante desses dados sobre os aspectos positivos trazidos pelo brincar em situação de hospitalização, é possível pensar ou questionar sobre a possibilidade de o brincar se constituir em uma estratégia adequada para o enfrentamento da hospitalização. Considerando-se a constatação de Antoniazzi; Dell’Aglio e Bandeira (1998) sobre a necessidade de mais pesquisas sobre as estratégias de enfrentamento no Brasil, decidiu-se realizar uma pesquisa abordando de forma sistemática essas duas temáticas: as estratégias de enfrentamento da hospitalização e o brincar no contexto hospitalar. Procurou-se, assim, relacionar esses dois fatores relevantes e atuais para a promoção do bem-estar e da qualidade de vida de crianças com câncer, fazendo uma interação entre pesquisa básica e pesquisa aplicada, de forma a gerar resultados "(...) significativos do ponto de vista de sua efetiva utilização no que diz respeito ao planejamento, implementação e avaliação de intervenções nos diferentes domínios da Psicologia da Saúde", como proposto por Fávero (1992, p. 26).
Parte da pesquisa em questão encontra-se descrita neste artigo, cujos objetivos gerais são: a) identificar e avaliar, a partir do relato da própria criança, a importância dada por ela ao brincar como estratégia de enfrentamento; e b) caracterizar atividades lúdicas (brincar) possíveis na situação hospitalar.
MÉTODO
Participantes
Participaram desta pesquisa 28 crianças (9 meninas e 19 meninos), com idade entre 6 e 12 anos (média de 9 anos), em tratamento no Serviço de Onco-Hematologia de um hospital infantil público, em Vitória/ES. A Unidade de Onco-Hematologia desse hospital é considerada referência no ES para o tratamento das doenças neoplásicas e hematológicas infantis, atendendo crianças, em sua maioria, provenientes de famílias carentes e naturais de todo o Estado, e também do Sul da Bahia e do Leste de Minas Gerais, (Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória, 1999).
A escolaridade das crianças variou da pré-escola até a 6ª. série do Ensino Fundamental, com uma concentração maior de crianças na 2ª série (32,1%). Em termos clínicos, 71,4% das crianças eram portadoras de leucemia, estando em fase de manutenção (64,3%), sem recidiva (85,7%).
Critérios para seleção da amostra
A escolha dos pacientes do Serviço de Oncologia como participantes desta pesquisa deveu-se ao fato de o tempo de internação hospitalar e o tratamento ambulatorial serem mais prolongados, colocando a criança em situação de risco para o seu desenvolvimento.
A decisão pela faixa etária de 6 a 12 anos, por sua vez, atendia à necessidade da pesquisa de que a criança tivesse compreensão e linguagem suficientemente desenvolvidas para participar das entrevistas e da aplicação do instrumento de avaliação.
Considerando-se que, em média, ocorrem 10 novos registros/mês, estimou-se inicialmente a necessidade de dois meses para a coleta de dados, o que não ocorreu, pois foram necessários três meses (junho a agosto/2000), porque em alguns casos não coincidia a presença da criança com a disponibilidade de espaço para a realização da entrevista.
Material
Para a coleta de dados, foram utilizados como instrumentos: 1. ficha para registro de dados obtidos em prontuários médicos e fichas de dados sociais; 2. roteiro de entrevista sobre o Serviço de Oncologia; 3. roteiro de entrevista com 5 perguntas abertas a serem feitas para a criança, sobre: a) suas estratégias de enfrentamento da hospitalização (pensamentos, sentimentos e atitudes), b) o que gostaria de fazer no hospital; e c) o brincar (definição do brincar, preferência sobre o quê e com quem brincar no hospital); e 4. um instrumento especialmente elaborado para a avaliação das estratégias de enfrentamento da hospitalização e para caracterização do brincar no hospital, a partir dos relatos das crianças, denominado AEH - Avaliação das Estratégias de Enfrentamento da Hospitalização. Este instrumento é constituído por dois conjuntos: AEH - Conjunto A: Enfrentamento da Hospitalização, com 20 pranchas com desenhos de estratégias de enfrentamento da hospitalização, incluindo o brincar (Prancha A1); e AEH - Conjunto B: Brincar no Hospital. Este último conjunto será descrito a seguir com maior detalhe, por ter permitido a coleta dos dados relatados neste artigo.
O AEH - Conjunto B: Brincar no Hospital - é constituído de um caderno de desenho espiral com 24 tipos de brincadeiras desenhadas em preto e branco. Este Conjunto B permite investigar, de modo mais específico, a importância atribuída ao brincar pela criança no seu processo de enfrentamento da hospitalização. Foi utilizada a classificação por grupo de brinquedos, proposta pelo Sistema Esar (Garon, 1996), com o acréscimo de uma categoria com atividades recreativas diversas (AD), que não puderam ser classificadas por esse sistema. Assim, o AEH - Conjunto B: Brincar no Hospital - contempla os seguintes tipos de brincadeiras: (E) jogos de exercício (jogar bola e tocar instrumentos); (S) jogos simbólicos (fantoches, palhaço, desenhar e médico); (A) jogos de acoplagem (montagem, modelagem, recorte/colagem e quebra-cabeça); (R) jogos de regras (baralho, minigame, dominó, bingo e dama); e (AD) atividades recreativas diversas (assistir TV, ler gibi, ouvir histórias, vários brinquedos e cantar e dançar).
Procedimento
A pesquisa foi executada em 4 etapas: 1. identificação dos participantes a partir do cadastro de pacientes; 2. coleta de informações gerais para caracterização das crianças, a partir de prontuários médicos e de fichas sociais e do Serviço de Oncologia, por meio de entrevista com uma assistente social; 3. elaboração do instrumento de avaliação das estratégias de enfrentamento (AEH); e 4. aplicação do instrumento para a investigação das estratégias de enfrentamento da hospitalização da criança com câncer, que incluía o roteiro de entrevista com 5 perguntas para a criança, cujas respostas foram gravadas, iniciando-se com uma pergunta aberta: “O que você tem feito, pensado ou sentido durante o tempo que você fica no hospital?”.
Para a aplicação das pranchas do AEH - Conjunto B: Brincar no Hospital – assim como foi feito no AEH - Conjunto A, foram oferecidos à criança 5 pequenos círculos de velcro, de tamanho e cores iguais, que deveriam ser fixados no círculo preso ao caderno de respostas, segundo sua avaliação: a criança deveria fixar 1 círculo quando considerasse que gostaria de brincar com o que estava desenhado na prancha apenas às vezes; 2 círculos, no caso de quase sempre; 3 círculos, no caso de sempre; e 0 (nenhum) círculo para o caso de não ter vontade de brincar nunca com o que estava na figura, durante a sua hospitalização. Após a escolha de cada prancha, a criança deveria justificar sua resposta, sendo esses relatos gravados.
RESULTADOS
Inicialmente, convém relatar que, por meio da prancha A1 (Brincar) do AEH - Conjunto A: Enfrentamento da hospitalização (aplicado previamente ao AEH - Conjunto B: Brincar no hospital), verificou-se que o brincar fazia parte do repertório de estratégias de enfrentamento da hospitalização da maioria das crianças (92,9%). Esses dados foram estudados, então, de modo mais detalhado, por meio de entrevista e com a aplicação do AEH - Conjunto B: Brincar no hospital, cujos dados serão agora apresentados em duas partes: 1. dados obtidos pelo roteiro de entrevista; e 2. dados obtidos com a aplicação das pranchas do AEH - Conjunto B.
Dados obtidos pelo Roteiro de Entrevista
As respostas à pergunta inicial sobre o que tem feito, pensado e sentido durante a hospitalização mostraram que a atividade de brincar foi a mais citada (38,6%) pelas crianças, sendo seguida por descrições da rotina da hospitalização (21%).
Da mesma forma, diante da pergunta: O que você gostaria de fazer no hospital, novamente, o brincar foi citado pela maioria das crianças (78,6%).
Ao investigar como as crianças desta pesquisa definiam o brincar, verificou-se que 67,8% das crianças o fizeram a partir de sua função lúdica, considerando as conseqüências de divertimento, alegria e prazer: “(...) eu acho que brincar, assim, é uma coisa divertida. A gente brincar para se distrair, para se alegrar, quando está mais triste, mais para baixo. Eu acho que brincar é isso” (F, 12 anos). Foi freqüente entre as crianças (25%) definir o brincar de forma descritiva, relatando as brincadeiras e brinquedos utilizados para brincar.
Em relação ao parceiro de brincadeiras desejado, a maioria das crianças relatou que gostaria de brincar com as próprias crianças que freqüentavam o hospital, justificando sua escolha pelo fato de “serem do mesmo tamanho”.
Dados obtidos pelo AEH - Conjunto B: Brincar no hospital
O processamento das respostas das crianças às pranchas do AEH - Conjunto B: Brincar no hospital - seguiu o seguinte esquema: 1. foram classificadas inicialmente em: afirmativas e negativas; 2. as escolhas foram, então, classificadas segundo o tipo de brincadeira de acordo com o sistema de categorias já descrito; 3. foi criado um conjunto de categorias para classificar as justificativas dadas pelas crianças para as escolhas feitas, conjunto este descrito a seguir: 1. Respostas explicativas: quando a criança procurava se justificar por meio de exemplos ou experiências vividas com a brincadeira representada nos desenhos; a partir desta categoria, foram elaboradas algumas subcategorias relacionadas ao: a) ambiente hospitalar: experiências vividas no hospital e características do ambiente hospitalar; b) contexto da brincadeira: características particulares ao contexto da brincadeira (brinquedos, ações, exemplos de brincadeiras); c) contexto familiar: a criança recorda suas experiências com a brincadeira; d) características da criança: características pessoais, crenças, valores e regras da criança; e) aspectos afetivos e emocionais: a criança justifica a escolha ou a recusa da brincadeira, relatando sentimentos e sensações positivos e/ou negativos; f) conseqüências específicas: a criança relata conseqüências positivas e/ou negativas específicas de determinada prancha para justificar seja a escolha seja a recusa; 2. Respostas valorativas: geralmente caracterizadas por: é bom/é ruim; eu gosto/eu não gosto; é legal/é chato.
Verificou-se que as brincadeiras propostas nas pranchas do AEH - Conjunto B: Brincar no hospital - foram bem escolhidas pelas crianças estudadas, destacando-se a freqüência de respostas sempre, que atinge mais de 50% das escolhas. Quando se agrupam as respostas às vezes, quase sempre e sempre - constituindo um grupo de respostas sim - obtêm-se 79,6% de respostas afirmativas às pranchas do AEH - Conjunto B: Brincar no hospital.
Esses dados parecem indicar que o brincar, de um modo geral, está presente nas pretensões da criança quando está hospitalizada. Ela quer brincar e parece não selecionar muito o tipo de brincadeira que gostaria de fazer. Isso pode acontecer seja por uma privação, em que o acesso ao brinquedo pode ser mais difícil por restrições socioeconômicas, seja pela privação comumente imposta no ambiente hospitalar em relação ao brincar. Então, quando é permitido escolher, mesmo que no papel, o que gostaria de brincar, parece que há uma preocupação em não desperdiçar possibilidades.
Os resultados observados indicaram também que as pranchas sobre as atividades de recortar e colar (prancha B22) e cantar e dançar (prancha B23) foram as únicas em que a resposta não sobressaiu, mesmo que discretamente.
Buscando conhecer as razões que levaram as crianças a recusar a atividade de recorte e colagem, verificou-se que conseqüências negativas são relatadas pela maioria das crianças: "(...) não tem graça, não. (Q)3 A gente fica cortando no papel, colando... agarra cola na mão da gente... suja" (sexo masculino - M, 11 anos); da mesma forma, outros destacaram a possibilidade de se sujar e até mesmo de se machucar como conseqüência negativa desta atividade. Por outro lado, as crianças que a escolheram não explicaram os motivos, ou seja, a criança escolhe brincar porque é legal, bom, ou porque gosta.
Características das crianças, como ter vergonha, estão entre as justificativas para não cantar e dançar. Este sentimento também foi indicado como uma conseqüência negativa, ligada a aspectos afetivos ou emocionais da atividade de cantar: "Eu fico com vergonha" (M, 6 anos).
Outras pranchas chamaram a atenção pelo índice de recusa inferior a 10% das respostas. Foi o caso da prancha A4- Assistir TV e da prancha A19- Bingo. Segundo dados obtidos por observação informal e do relato da assistente social, essas duas atividades parecem ser comuns no cotidiano dessas crianças. Analisando as razões que as levam a querer ver televisão enquanto estão no hospital, verifica-se que aspectos afetivos ou emocionais conseqüentes da atividade são usados para justificar a escolha da maioria. Entre esses aspectos afetivos ou emocionais, destacam-se os relatos em que a atividade de assistir TV é escolhida por sua função de distração, diversão e bem-estar: (...) é bom você passar o tempo, você se distrai, tem coisas interessantes que passam (...)" (M, 12 anos).
Analisando os motivos que levam as crianças a escolherem com certa freqüência a prancha A19- Bingo, chama a atenção a concentração da maioria das justificativas nas conseqüências positivas de se jogar bingo. O bingo é escolhido, principalmente, pelas chances que se tem de ganhar algum prêmio: “(...) a gente fica querendo ganhar, a gente fica naquela ansiedade, querendo ganhar, porque ali, a gente 'tá ganhando um prêmio” (sexo feminino - F, 12 anos). Assim, a motivação para participar do bingo, ganhar um prêmio, parece ser acompanhada por sensações e emoções positivas, que contribuíram para a escolha da prancha.
Analisando, agora, as escolhas das crianças por tipos de brincadeiras, verificou-se que, em relação aos jogos de exercício (E), tocar instrumentos (B13- 85,7%) foi o mais escolhido, com justificativas relacionadas a ser divertido e facilitar a aprendizagem. As escolhas e rejeições para jogar bola (B3- 71,4%) não foram justificadas de modo detalhado; sintetizadas em relatos como: "Eu acho legal esse tipo de brincadeira" (M, 8 anos); ou seja, deseja-se jogar bola porque é bom, é legal, porque se gosta, sem especificar as sensações e/ou utilidades que a brincadeira tem ou proporciona.
Entre os jogos simbólicos (S), desenhar (B9- 89,2%) e brincar com palhaço (B8- 78,6%) foram as brincadeiras mais escolhidas. O contexto da brincadeira justificou as respostas afirmativas nas pranchas B8- Palhaço, B9- Desenhar, B12- Médico e B16- Fantoches. Provavelmente, os materiais (objetos coloridos e atraentes) e as possibilidades de uso influenciaram as crianças a escolher tais atividades no hospital.
Brincar com palhaço (prancha B8) foi a prancha relacionada a jogos simbólicos que obteve o segundo maior número de respostas afirmativas. Como esta atividade é muito enfatizada nos hospitais (inclusive nesse), havia uma expectativa especial em relação ao que a criança pensa sobre o assunto. Analisando as justificativas, verifica-se que as crianças que escolhem brincar com palhaço, o fazem devido tanto a fatores relacionados ao contexto da brincadeira quanto a aspectos afetivos ou emocionais. Entre os aspectos do contexto da brincadeira, destacam-se relatos referentes à vestimenta, à aparência física e às atitudes do palhaço, que, por si sós, atraem algumas crianças: "(...) é legal brincar com o palhaço. (Q) Ele, fazendo suas careta, rindo... com essa roupa, com o sapato grande" (M, 8 anos). Entre os aspectos afetivos ou emocionais relacionados à escolha desse tipo de atividade, destacam-se as sensações de alegria e felicidade, as gargalhadas, os sorrisos e a diversão proporcionados pela interação com o palhaço: "(...) é a alegria da criança. Criança fica com aquele sorriso no rosto, aí, eu gosto" (F, 9 anos).
As crianças que não escolheram esse tipo de atividade deram justificativas relacionadas ao contexto da brincadeira. Viu-se que, enquanto para umas crianças a caracterização do palhaço é suficiente para despertar o interesse em brincar com ele, para outras, acontece o contrário: "(...) Eu acho ele muito besta. (Q) Aquela cara pintada" (M, 11 anos); respostas estas dadas por crianças que tinham no mínimo 10 anos.
Considerando-se, agora, os resultados obtidos nas pranchas representativas de jogos de acoplagem ou de construção (A), verificou-se que, com exceção da prancha B22- Recorte e colagem, as brincadeiras foram bem escolhidas: montagem (B4- 89,2%), modelagem (B20- 85,7%) e quebra-cabeça (B24- 85,7%). As escolhas desses jogos foram justificadas pelo contexto da brincadeira (o que pode ser montado ou modelado na atividade).
De modo geral, os jogos de regras (R) foram bem escolhidos, principalmente pelo contexto da brincadeira caracterizado por ações e pelo clima de competição típicos de jogos dessa natureza: "(...) fica querendo ganhar dos outros" (F, 12 anos). Esse contexto parece ser acompanhado de sensações de prazer e alegria: "(...) você se distrai com as cartas (...) você acaba se divertindo mais em ganhar o jogo (...)" (M, 12 anos). Além dessas justificativas baseadas em aspectos afetivos e emocionais, foram citadas outras, relacionadas a experiências vividas no ambiente hospitalar, no contexto familiar, além de características das crianças e conseqüências específicas das brincadeiras.
Por fim, no subconjunto representativo de brincadeiras alternativas, inseridas na categoria Atividades Recreativas Diversas (AD), o contexto da brincadeira mostrou-se relevante, principalmente para as escolhas das atividades de ouvir histórias (B10- 89,3%) e brincar com brinquedos variados (B17- 75%). “Lendo revistinha, divertindo-se e aprendendo mais" (M, 12 anos), foram as justificativas mais relatadas pelas crianças na prancha B5- Ler gibi (89,3%), juntamente com seus aspectos afetivos e emocionais (divertir, distrair e sentir-se feliz), e, por fim, cantar e dançar (B23- 53,6%) tiveram suas poucas respostas afirmativas sem justificativas detalhadas.
DISCUSSÃO
O presente relato faz parte de uma pesquisa mais ampla, em que o propósito foi identificar e avaliar a importância dada ao brincar pela criança com câncer, como estratégia de enfrentamento da hospitalização, elaborando um instrumento com desenhos para a avaliação de suas estratégias de enfrentamento, com ênfase nas possibilidades do brincar no contexto hospitalar. Foi possível, assim, caracterizar atividades lúdicas possíveis no hospital, tema específico do presente artigo. Procurou-se conhecer esse tema por meio do relato da própria criança, uma vez que há pesquisas mostrando divergências entre a auto-avaliação infantil e as percepções de familiares e da equipe médica que cuida da criança (Assumpção, Kuczynski, Sprovieri & Aranha, 2000).
Em termos metodológicos, pode-se considerar que a proposição de pranchas com desenhos ampliou as possibilidades de expressão dos sentimentos, comportamentos e pensamentos das crianças com câncer sobre a hospitalização. Essa ampliação pode ser constatada frente à diferença de conteúdos obtidos por meio das questões abertas e das questões intermediadas pelas pranchas. Estas últimas serviram como potenciais facilitadores para a identificação e compreensão da importância do brincar para a criança com câncer hospitalizada, podendo assim fornecer subsídios para intervenções psicológicas e ações institucionais consistentes.
Considerando-se a possível contribuição desta pesquisa para as ações institucionais voltadas à promoção de uma qualidade de vida adequada no ambiente hospitalar, o material proposto pode indicar alguns caminhos quando a criança relata não fazer uso de estratégias positivas - como, por exemplo, brincar - pela falta de recursos materiais e humanos fornecidos pelo hospital (Motta & Enumo, 2002). Neste caso, intervenções no ambiente hospitalar com vistas à promoção do desenvolvimento psicológico da criança hospitalizada têm sido investigadas e, segundo estudo feito por Zannon (1991) sobre a intervenção comportamental no ambiente hospitalar, existe uma perspectiva que busca melhorias na qualidade da experiência hospitalar de crianças, a partir da obtenção de resultados referentes à “(...) oferta de experiências naturais, cotidianas, de interação organismo-ambiente, com ampliação e compensação de oportunidades, dados o estado de fragilidade bio-psico-social, a história e o momento de restrições organísmicas e situacionais experimentadas pela criança hospitalizada” (Zannon, 1991, p.131).
Diante disso, a proposta de um instrumento como o AEH - Conjunto B: Brincar no Hospital, se aproxima dessas intervenções, ao menos em relação às experiências lúdicas, no sentido de propor atividades recreativas mais familiares ao cotidiano e interesse da criança.
O material proposto não é apenas uma escala que mede valores numéricos do comportamento, uma vez que usa o inquérito para aprofundar as respostas. Este é um diferencial, juntamente com o estímulo do desenho para as perguntas a serem feitas para a criança, e também a forma de registro oferecida, que se assemelha a um jogo. Este caráter lúdico do material se mostrou capaz de envolver e motivar a participação da criança na entrevista.
Analisando os estressores típicos da hospitalização e aqueles específicos do tratamento de câncer e que são associados ao hospital, destaca-se a exposição aos procedimentos médicos invasivos (Van Dongen-Melman & Sanders-Woudstra, 1986; Fegley, 1988; Bertazzi & Pandini, 1992; Manne, Bakeman, Jacobsen & Redd, 1993; Costa Jr., 1999; Santos, 2000; Chen e cols, 2000; Motta & Enumo, 2002). Diante disso, discute-se a importância do investimento em técnicas que visem a alterar estratégias de enfrentamento negativas ou então a associá-las a outras mais positivas. Caberia aqui a sugestão do uso de estratégias positivas, como o brincar, para o enfrentamento do estresse em face dos procedimentos invasivos.
Retoma-se aqui a discussão já colocada anteriormente em relação ao brincar como instrumento de recreação e o brincar como recurso terapêutico (Sagesse & Maciel, 1996). Em ambos os casos, ele pode caracterizar-se como estratégia de enfrentamento adequada.
Do ponto de vista da criança, o interesse e o uso da brincadeira devem-se principalmente ao efeito imediato que têm ao se divertir e se entreter. E a criança faz uso dele quando e porque o hospital fornece recursos para tanto. Ao brincar no hospital, a criança altera o ambiente em que se encontra, aproximando-o de sua realidade cotidiana, o que pode ter um efeito bastante positivo em relação a sua hospitalização. Com isso, a própria atividade recreativa, livre e desinteressada, tem um efeito terapêutico, quando se considera terapêutico tudo aquilo que auxilie na promoção do bem-estar da criança.
Por outro lado, o brincar pode ter uma aplicação que é preferível chamar de técnica no lugar de terapêutica. Esta aplicação refere-se principalmente ao seu uso junto à criança hospitalizada, como, por exemplo, para ajudá-la na compreensão e na adaptação mais adequada ao procedimento médico invasivo (Garcia, 1996) e como recurso para a técnica de imaginação/distração, utilizada para a adaptação de crianças à hospitalização (Méndez e cols., 1996), entre outros já citados.
Essas duas possibilidades do brincar discutidas anteriormente remetem a uma questão de fundamental importância, quando se analisam as estratégias de enfrentamento mais adequadas para auxiliar a criança na sua relação com o contexto hospitalar. A criança tem em seu repertório comportamental formas de enfrentar situações adversas particulares e, no caso da hospitalização, estas parecem atuar no sentido da promoção de um ambiente mais familiar e menos ameaçador. Nesse sentido, uma intervenção que vise a inserir estratégias de enfrentamento mais eficazes deve levar em conta o que já existe em seu repertório, no sentido de estender e tornar significativa ou eficaz a sua aplicação.
As questões discutidas anteriormente, assim como dados específicos sobre o brincar no contexto hospitalar, mostraram que, para as crianças hospitalizadas com câncer, brincar é considerado uma estratégia positiva para o enfrentamento da hospitalização. Essas crianças já brincam enquanto estão hospitalizadas, e o fato de desejarem continuar brincando demonstra os efeitos positivos que este comportamento traz. Brincando, ela reproduz, no espaço hospitalar, experiências cotidianas; e a própria preferência por brincar com crianças, identificada neste trabalho, a aproxima ainda mais do seu contexto familiar ou cotidiano. Esta preferência não descarta a importância do adulto, pois um recreador ou um familiar podem facilitar a aproximação das crianças.
Ao escolherem aquilo com o que gostariam de brincar no hospital, as crianças identificaram razões específicas para suas respostas. Contudo, de modo geral, não apresentam muitas restrições aos tipos de brincadeira, mostrando que o importante é brincar. Somente evidenciaram certa preocupação quanto ao fato de que determinada brincadeira, ao ser proposta muito freqüentemente, pode acabar enjoando. Denota-se aí um cuidado em não tornar a brincadeira uma atividade mecânica no hospital. Para tanto, esforços deveriam ser empenhados por parte da instituição, no sentido de organizar atividades recreativas que subsidiem o uso do brincar como uma estratégia de enfrentamento positiva. Entretanto, não parece haver ações institucionais estruturadas para este fim. De certa forma, ainda prevalece nas instituições um investimento maciço em ações voltadas para o tratamento medicamentoso. Sua atuação para além desse investimento caracteriza-se somente pelo estabelecimento de parcerias com instituições não-governamentais, que buscam atender a aspectos relacionados à adaptação psicossocial ao tratamento, utilizando a recreação. Esta parceria tem se mostrado benéfica, especialmente no caso do hospital em estudo.
Como relatado anteriormente, algumas brincadeiras são escolhidas por razões bastante específicas da própria brincadeira. Não cabe aqui discuti-las uma a uma, porquanto isso estenderia o estudo a outras perspectivas. No entanto, uma brincadeira escolhida pela maioria das crianças hospitalizadas com câncer merece ser debatida. É o caso da atividade recreativa com o palhaço no hospital.
Os relatos de experiência sobre a presença do palhaço no hospital têm mostrado o efeito positivo que este tipo de atividade exerce sobre o bem-estar da criança hospitalizada, desencadeando sorrisos e alegria (Masetti, 1997 e Françani e cols., 1998). De modo geral, as crianças respondem de maneira positiva às estimulações do palhaço. Nesta pesquisa, a maioria delas pôde confirmar esta afirmação. Por outro lado, relatos de algumas crianças levantam questões sobre a intervenção do palhaço no ambiente hospitalar, no sentido de que existem variáveis, como a idade e a experiência anterior com palhaços, que podem influenciar a responsividade da criança a essa atividade. Essa discussão não implica no questionamento da eficácia e das contribuições que esse tipo de serviço, quando bem estruturado e supervisionado, tem trazido para o bem-estar da criança hospitalizada; apenas alerta para que tais atividades sejam orientadas no sentido de respeitar a autonomia que a criança, mesmo hospitalizada, tem para escolher quando e com o quê brincar, respeitando-se o tempo que ela tem para sentir-se familiarizada e confiante para interagir com o palhaço.
De modo geral, os dados mostraram que brincar constitui-se de fato em um recurso viável e adequado para o enfrentamento da hospitalização e pode ser mais utilizado quando a criança encontra apoio nas ações institucionais que viabilizam e disponibilizam recursos humanos e materiais para este fim.
Fonte: Scielo Brasil
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