Eis um enigma médico: quando um traço de uma doença pode ser pior do que uma manifestação completa da enfermidade?
Por Dra. Abigail Zuger- The New York Times News Service/Syndicate
E eis uma dica: pior para quem? Suponha que não é com a pessoa doente que estamos preocupados, mas com os amigos, familiares, colegas e clientes do indivíduo. Os autores de 'Almost a Psychopath' ('Quase um psicopata') sugerem que as pessoas que apresentam apenas algumas das características mais perigosas de um psicopata podem custar ainda mais caro para a comunidade do que aquelas que recebem o diagnóstico de fato, já que os psicopatas parciais são muito mais penetrantes e evasivos.
'Os psicopatas fazem parte de nossa vida profissional', escrevem os autores (o Dr. Ronald Schouten tem graduação em Direito e Medicina e é psiquiatra da Faculdade de Medicina de Harvard; James Silver é advogado de defesa criminal). A maioria das pessoas, porém, não corre riscos de conhecer um desses criminosos profissionais; os especialistas estimam que eles representam apenas cerca de 1 por cento da população.
É muito mais comum cair nas garras de alguém de dentro do espectro psicótico que tenha encanto, egoísmo, falsidade, agressividade, espírito manipulador e falta de empatia suficientes para fazer o que bem quer com a mente alheia – e normalidade suficiente para não ser identificado. Na verdade, o que esses autores chamam de 'quase psicopatas' são também chamados de 'psicopatas bem-sucedidos', porque muitas vezes eles se dão muito bem na vida, apesar do acúmulo gradual de vítimas em seu rastro.
Schouten e Silver escreveram um livro de autoajuda sofisticado, direcionado principalmente para tais vítimas – pais, cônjuges e colegas de trabalho – mas também para qualquer pessoa que possa sentir algum desses traços em si mesma. Os autores incluem uma discussão detalhada dos processos de pensamento por trás de uma avaliação psiquiátrica e uma visão geral de teorias ainda preliminares de causalidade.
Os quase-psicopatas são intrinsecamente fascinantes; eles podem ascender e decair na vida (certos rebentos das políticas e finanças vêm à mente) ou simplesmente provocar sofrimentos em menor escala, assumindo papéis de cônjuges controladores, colegas manipuladores ou adolescentes incontroláveis.
No trabalho, eles podem ser competentes, autodisciplinados e alcançar objetivos ambiciosos. Em casa, podem ser encantadores e muito divertidos. E por dentro, podem ser tão moralmente vazios quanto qualquer psicopata de verdade, mas os quase-psicopatas são alertas o suficiente para manter alguns de seus piores instintos sob controle, permanecer empregados e ficar fora de problemas jurídicos relevantes.
Como agir quando um quase-psicopata faz parte de nossa vida? Schouten e Silver sugerem alguns passos básicos, nenhum deles particularmente surpreendente. Quem é pai de um quase-psicopata certamente precisa recorrer a ajuda profissional. Talvez dados que sugerem que as crianças podem superar comportamentos preocupantes possam servir como um consolo por um bom tempo, mas é improvável que apenas esperar que eles passem naturalmente seja uma boa tática.
Se você é amigo ou cônjuge de um quase-psicopata, deve saber quando deve parar de negociar, afastar-se ou cair fora; o mesmo vale para os colegas de trabalho e funcionários. Como os autores enfatizam, os quase-psicopatas 'fazem muito melhor o que fazem do que nós ao tentarmos identificá-los e detê-los. E às vezes isso requer que escapemos de uma situação ruim e permitamos que outros caiam em si dentro de seu próprio ritmo'.
Os políticos e financistas não são os únicos profissionais que podem ser impulsionados para a estratosfera por suas falhas psíquicas. É rotina ver homens e mulheres da ciência que voam alto com o mesmo combustível, apesar de vários códigos profissionais e da afirmação invariável de que eles fazem o que fazem para o benefício duradouro da humanidade. Em 'Prize Fight' ('Luta pelo prêmio'), o Dr. Morton A. Meyers apresenta um inventário completo dos comportamentos inglórios provocados por esse amor pelos outros, evidência clara de que os transtornos de personalidade abundam nas artes da cura e das ciências também.
A gama de más condutas levantada por Meyers inclui o plágio e a fabricação de dados, como os ratos brancos que se tornaram pretos com algumas pinceladas da caneta de feltro de um pesquisador. Mas o verdadeiro assunto que Meyers aborda são os conflitos mais sutis que vieram à tona quando pesquisas realmente importantes começaram a tomar forma, e os atores principais se encontram fantasiando sobre aquele telefonema de Estocolmo, um dos primeiros sintomas da doença chamada 'nobelite'.
Dois casos desse contágio destrutivo, mas felizmente incomum, afetaram jovens investigadores ambiciosos e seus orientadores, igualmente ambiciosos. Em termos mais simples, os jovens fizeram o trabalho pesado, enquanto os mais velhos receberam o financiamento, o crédito e o prêmio. Membros da contenciosa equipe canadense responsável pela descoberta da insulina em 1923, na verdade, acabaram passando rasteira uns nos outros; as disputas que cercam o isolamento do medicamento antituberculose estreptomicina em 1943 foram limitadas ao âmbito jurídico, mas ressoaram durante uma década, amargurando todos os envolvidos.
Dr. Morton A. Meyers
Dr. Morton A. Meyers
Mais recentemente, o combate em torno do desenvolvimento da ressonância magnética não se deu entre professor e aluno, mas entre pesquisadores consagrados. Meyers é professor de Radiologia e Medicina da Universidade Stony Brook e conhece em primeira mão tanto a pesquisa científica quanto algumas das personalidades envolvidas aqui. Embora sua narrativa descambe um pouco para histórias pessoais e detalhes técnicos opacos, ele pinta um retrato claro de uma disputa por glória e dinheiro que se manifesta em manobras tão sutis quanto a omissão de uma nota de rodapé e tão extravagantes quanto uma série de anúncios de página inteira de jornal exigindo que o comitê do Nobel reconsidere uma decisão.
Talvez alguns leitores consigam tomar partido nessa batalha. Outros vão ficar com a sensação infeliz de que no caldeirão de alta pressão que é a pesquisa médica moderna, o maior desafio para muitos envolvidos pode não ser a própria ciência, mas alcançar e manter o desprendimento e a integridade necessários. Talvez o bom comportamento no laboratório mereça agora virar uma categoria em si no prêmio Nobel.
Postado em 07/07/2012 07:45, fonte ultimosegundo.ig.com.br
NYT
Encantadores, divertidos e competentes no trabalho, esses indivíduos chamam pouca atenção, mas podem causar mais danos à sociedade do que os diagnosticados como psicopatas
Eis um enigma médico: quando um traço de uma doença pode ser pior do que uma manifestação completa da enfermidade? Aí vai uma dica: pior para quem? Suponha que não é com a pessoa doente que estamos preocupados, mas com os amigos, familiares, colegas e clientes do indivíduo.
Os autores do livro "Almost a Psychopath" (Quase um Psicopata), recém-lançado nos Estados Unidos e ainda não lançado no Brasil, sugerem que as pessoas que apresentam apenas algumas das características mais perigosas de um psicopata podem custar ainda mais caro para a comunidade do que aquelas que recebem o diagnóstico de fato, já que os psicopatas parciais são muito mais penetrantes e evasivos.
Veja também: Como identificar um cafajeste e O cérebro do corrupto é diferente?
"Os psicopatas fazem parte de nossa vida profissional", escrevem os autores - o Dr. Ronald Schouten, que tem graduação em Direito e Medicina e é psiquiatra da Faculdade de Medicina de Harvard, e James Silver, que é advogado de defesa criminal.
A maioria das pessoas, porém, não corre riscos de conhecer um desses criminosos profissionais; os especialistas estimam que eles representam apenas cerca de 1% da população.
É muito mais comum cair nas garras de alguém de dentro do espectro psicótico que tenha encanto, egoísmo, falsidade, agressividade, espírito manipulador e falta de empatia suficientes para fazer o que bem quer com a mente alheia – e normalidade suficiente para não ser identificado.
Na verdade, o que esses autores chamam de "quase psicopatas" são também chamados de "psicopatas bem-sucedidos", porque muitas vezes eles se dão muito bem na vida, apesar do acúmulo gradual de vítimas em seu rastro.
Schouten e Silver escreveram um livro de autoajuda sofisticado, direcionado principalmente para tais vítimas – pais, cônjuges e colegas de trabalho – mas também para qualquer pessoa que possa sentir algum desses traços em si mesma. Os autores incluem uma discussão detalhada dos processos de pensamento por trás de uma avaliação psiquiátrica e uma visão geral de teorias ainda preliminares de causalidade.
Os quase-psicopatas são intrinsecamente fascinantes; eles podem ascender e decair na vida (certos rebentos das políticas e finanças vêm à mente) ou simplesmente provocar sofrimentos em menor escala, assumindo papéis de cônjuges controladores, colegas manipuladores ou adolescentes incontroláveis.
No trabalho, eles podem ser competentes, autodisciplinados e alcançar objetivos ambiciosos. Em casa, podem ser encantadores e muito divertidos.
Saiba mais: A doença da mentira compulsiva
E por dentro, podem ser tão moralmente vazios quanto qualquer psicopata de verdade, mas os quase-psicopatas são alertas o suficiente para manter alguns de seus piores instintos sob controle, permanecer empregados e ficar fora de problemas jurídicos relevantes.
Como agir quando um quase-psicopata faz parte de nossa vida? Schouten e Silver sugerem alguns passos básicos, nenhum deles particularmente surpreendente. Quem é pai de um quase-psicopata certamente precisa recorrer a ajuda profissional. Talvez dados que sugerem que as crianças podem superar comportamentos preocupantes possam servir como um consolo por um bom tempo, mas é improvável que apenas esperar que eles passem naturalmente seja uma boa tática.
Leia ainda: Por que mentimos?
Se você é amigo ou cônjuge de um quase-psicopata, deve saber quando deve parar de negociar, afastar-se ou cair fora; o mesmo vale para os colegas de trabalho e funcionários. Como os autores enfatizam, os quase-psicopatas "fazem muito melhor o que fazem do que nós ao tentarmos identificá-los e detê-los. E às vezes isso requer que escapemos de uma situação ruim e permitamos que outros caiam em si dentro de seu próprio ritmo".
Dentro do mercado financeiro e da política
Os políticos e financistas não são os únicos profissionais que podem ser impulsionados para a estratosfera por suas falhas psíquicas. É rotina ver homens e mulheres da ciência que voam alto com o mesmo combustível, apesar de vários códigos profissionais e da afirmação invariável de que eles fazem o que fazem para o benefício duradouro da humanidade. No livro "Prize Fight" ("Luta pelo prêmio"), também lançado nos EUA, mas não no Brasil. o Dr. Morton A. Meyers apresenta um inventário completo dos comportamentos inglórios provocados por esse amor pelos outros, evidência clara de que os transtornos de personalidade abundam nas artes da cura e das ciências também.
Estudo: Autocontrole é contagioso
A gama de más condutas levantada por Meyers inclui o plágio e a fabricação de dados, como os ratos brancos que se tornaram pretos com algumas pinceladas da caneta de feltro de um pesquisador. Mas o verdadeiro assunto que Meyers aborda são os conflitos mais sutis que vieram à tona quando pesquisas realmente importantes começaram a tomar forma, e os atores principais se encontram fantasiando sobre aquele telefonema de Estocolmo, um dos primeiros sintomas da doença chamada "nobelite".
Dois casos desse contágio destrutivo, mas felizmente incomum, afetaram jovens investigadores ambiciosos e seus orientadores, igualmente ambiciosos. Em termos mais simples, os jovens fizeram o trabalho pesado, enquanto os mais velhos receberam o financiamento, o crédito e o prêmio. Membros da contenciosa equipe canadense responsável pela descoberta da insulina em 1923, na verdade, acabaram passando rasteira uns nos outros; as disputas que cercam o isolamento do medicamento antituberculose estreptomicina em 1943 foram limitadas ao âmbito jurídico, mas ressoaram durante uma década, amargurando todos os envolvidos.
Mais recentemente, o combate em torno do desenvolvimento da ressonância magnética não se deu entre professor e aluno, mas entre pesquisadores consagrados. Meyers é professor de Radiologia e Medicina da Universidade Stony Brook e conhece em primeira mão tanto a pesquisa científica quanto algumas das personalidades envolvidas aqui. Embora sua narrativa descambe um pouco para histórias pessoais e detalhes técnicos opacos, ele pinta um retrato claro de uma disputa por glória e dinheiro que se manifesta em manobras tão sutis quanto a omissão de uma nota de rodapé e tão extravagantes quanto uma série de anúncios de página inteira de jornal exigindo que o comitê do Nobel reconsidere uma decisão.
Talvez alguns leitores consigam tomar partido nessa batalha. Outros vão ficar com a sensação infeliz de que no caldeirão de alta pressão que é a pesquisa médica moderna, o maior desafio para muitos envolvidos pode não ser a própria ciência, mas alcançar e manter o desprendimento e a integridade necessários. Talvez o bom comportamento no laboratório mereça agora virar uma categoria em si no prêmio Nobel.
*Abigail Zuger é médica e professora da Universidade de Columbia, em Nova York
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Sobre os livros
'Almost A Psychopath: Do I (or Does Someone I Know) Have a Problem With Manipulation and Lack of Empathy?' –'Quase um psicopata: eu (ou alguém que eu conheço) tem algum problema com a manipulação e a falta de empatia?', de Ronald Schouten e James Silver. 280 páginas. Hazelden. 14,95 dólares.
'Prize Fight: The Race and the Rivalry to Be the First in Science' –'Luta pelo prêmio: a competição e a rivalidade para ser o primeiro na ciência', de Morton A. Meyers. 262 páginas. Macmillan. 27 dólares.
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