Osvaldo Aires Bade Comentários Bem Roubados na "Socialização"
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No mundo da Lya
A gaúcha Lya Luft se torna uma campeã de
vendagem com a lição de que a vida deve ser
saboreada no que tem de doce e de amargo
Isabela Boscov
Liane Neves
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Lya, na casa que construiu com o primeiro marido, em Porto Alegre: o sucesso depois dos 60 |
Existe uma longa (e quase esquecida) tradição filosófica, que começa na Grécia clássica, empenhada em refletir sobre a vida e a morte – ou, mais precisamente, sobre como remover os obstáculos que nos impedem de viver e morrer bem. Há também uma corruptela moderna, e altamente lucrativa, dessa tradição – a auto-ajuda, que trocou a reflexão pelo tom e pelas simplificações dos manuais. Entre esses dois extremos, encontra-se algo raro, que o best-seller Perdas & Ganhos, lançado no ano passado pela escritora Lya Luft, exemplifica. Perdas & Ganhos fala das armadilhas que nós próprios criamos, e que se interpõem entre nós e a fruição plena da vida. Fala do medo da velhice e do quanto ele é injustificado, da desorientação diante da educação dos filhos, da falta de tempo e de como desperdiçamos o pouco que temos em frivolidades, dos rancores passados que ainda norteiam o presente, do fim às vezes inevitável dos casamentos, dos arrependimentos pelas oportunidades que julgamos perdidas.
Fala, também, das rasteiras que vez por outra a vida nos passa, como nascer num lar infeliz ou o sofrimento com a morte de pessoas queridas. Fala, claro, das coisas boas da existência humana – especialmente as ligadas ao amor, em todas as suas formas. Não por acaso, muitos dos leitores do livro de Lya o têm usado como fonte de aconselhamento. Se, à primeira vista, isso parece caracterizar o trabalho da autora gaúcha como representante do segmento de auto-ajuda, um exame um pouco mais atento não demora a dispersar essa impressão – que Lya, aliás, abomina. "A auto-ajuda pretende ensinar as pessoas a serem felizes. Eu quero provocar meus leitores e fazer com que eles pensem", diz. Para tanto, ela se vale de um tom que reproduz o de uma conversa íntima: em uma prosa serena e de polimento nitidamente literário, a autora troca idéias com o leitor, faz reflexões, rememora episódios de sua vida, conta casos que lhe foram transmitidos por outros e emite opiniões – opiniões, frise-se, não conselhos.
Reprodução
| Pedro Rubens
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Com Celso Luft e, hoje, com a filha Suzana e as netas Bibi e Nanda: elas já acordam pedindo pela "fofó" |
Trata-se de um casamento feliz entre forma e conteúdo, ao qual o público reagiu de imediato. Lya varreu as livrarias do país como um pé-de-vento: chegou sem aviso e deixou um bocado desarrumada a tradicionalmente estável lista dos campeões nacionais de popularidade. Num mercado editorial em que vendas contadas às dezenas de milhares são um feito de destaque, a escritora gaúcha ultrapassou com facilidade a casa da centena. Já há 150.000 exemplares de Perdas & Ganhos nas mãos dos leitores. Nem há sinal de calmaria no horizonte: no início de fevereiro, o livro voltou ao primeiro posto da relação de mais vendidos de VEJA, na categoria ficção, que tem freqüentado assiduamente nos últimos oito meses e de onde desbancou o antes inexcedível Paulo Coelho.
Agora, seus direitos vêm sendo negociados também para o teatro, com a atriz Regina Duarte entre os principais interessados. Perdas & Ganhos é o 14º livro de Lya, e o primeiro em seus 24 anos de carreira a atingir repercussão e números desse porte. Mas não deve ser o último. Em 5 de março, as primeiras 40.000 cópias do próximo trabalho da escritora, Pensar É Transgredir, chegam às prateleiras das livrarias de todo o Brasil – e não se espera que demorem a sair delas.
Dois capítulos em especial de Pensar É Transgredir demonstram quanto Lya tem o pulso de seus leitores. Em Canção das Mulheres, uma mulher hipotética exorta seu companheiro a tomá-la nos braços quando ela está com medo, sem fazer perguntas demais; a perceber suas fragilidades sem rir nem se aproveitar delas; a não censurá-la quando ela pede um segundo drinque no restaurante; a admirá-la e amá-la mesmo que eventualmente ela perca a paciência, a graça ou a compostura; e assim por diante.
É uma espécie de compêndio das queixas e das dores cotidianas que, somadas, não raro terminam por consumir um relacionamento. Lya, entretanto, costuma ser severa com o recurso das mulheres à vitimização – e por issoCanção dos Homens é ainda mais pungente que a sua contrapartida feminina. Nela, o marido ou amante pede que a mulher não o humilhe por estar ficando calvo ou barrigudo, que não faça gestos públicos de enfado quando ele conta de novo uma mesma piada, que não tire o bebê de seus braços dizendo que homem não tem jeito para isso, que não comente a intimidade do casal com as amigas, que não o acuse quando ele está com pouco dinheiro, que o deixe também ter momentos de fraqueza.
E que atire a primeira pedra a mulher que nunca cometeu um desses pecados – ou que, na visão de Lya, não tenha sucumbido a envenenar o amor com essas doses pequenas, mas cumulativas, de desafeto. "Para viver de verdade, pensando e repensando a vida para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se", escreve a autora em outro ponto de Pensar É Transgredir.
Rafael Campos
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Regina, que negocia os direitos de Perdas & Ganhos: rumo ao teatro |
Essa literatura, que se pode chamar de cunho moral, floresceu desde a Antiguidade – com o grego Epicuro ou o romano Cícero, que além de ser estadista escreveu sobre, por exemplo, a dor pela perda de sua filha – até a segunda metade do século XIX, quando os filósofos alemães estavam na sua dianteira. Mas desde então essa grande presença se converteu numa ausência conspícua.
Hoje, afora o suíço Alain de Botton, que se diverte compilando aquilo que os grandes filósofos pensaram sobre temas caros também ao homem contemporâneo – como a falta de popularidade ou de dinheiro –, não há muitos escritores que se dediquem ao gênero. É essa a lacuna que Lya Luft parece preencher entre seus leitores. Guardadas as diferenças de crença, estilo e alcance, o que ela faz lembra aquilo que tornou o americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882) imensamente popular à sua época: não fornecer respostas para problemas (como a auto-ajuda pretende fazer), mas sim auxiliar homens e mulheres comuns a identificar suas indagações e indicar o caminho para que cada um chegue às suas soluções – um caminho que, em geral, está dentro de nós próprios.
Muito de Pensar É Transgredir se volta para esse tema: aquilo que Lya descreve como "a horrenda banalidade do cotidiano" e os seus efeitos deletérios sobre nossa capacidade de saborear a vida, no que ela tem de doce e de amargo. Mas há dados curiosos no sucesso de Lya. O primeiro é que a sua definição do que é banal não é exatamente a mais corrente. Em seus textos, a escritora é impiedosa com o consumo exagerado, a ânsia com a juventude, o carro, a viagem, o tênis mais caro para o filho. A riqueza, diz ela, está no tempo que se dedica aos filhos, aos amigos, aos amores, à sensualidade e ao trabalho feito com prazer – e que compra, isso sim, uma vida digna.
O público de Lya vem crescendo entre os homens e os jovens, mas é ainda na maioria composto de mulheres maduras. Para elas, que presumivelmente vivem divididas entre escolhas pessoais e profissionais, essa reafirmação de que o afeto é uma prioridade tem algo de alívio e, de tão antiga, também de novidade. O outro fator que chama a atenção em Perdas & Ganhos é que essas coisas não são ditas em tom de chamego, para agradar ao leitor. Não raro, elas tomam a forma de desabafos e chacoalhões, especialmente quando a escritora fala do tópico que mais a incendeia: a obsessão pela juventude, as plásticas que transformam mulheres feitas em caricaturas de adolescentes e o desejo de permanecer infantil também no espírito. Hoje amadurecemos tarde e mal, acredita Lya. Não à toa, portanto, tememos tanto a velhice: chegamos a ela vazios, sem a bagagem interior com que deveríamos nos sustentar em mais essa etapa.
Envelhecer, na definição de Lya, não tem nada a ver com entregar os pontos. Divertida, ela narra uma conversa que ouviu entre sua neta Isabela, de 5 anos, e uma amiguinha, que louvava os dotes culinários de sua avó. "A minha avó não faz bolo", retrucou Isabela. "Ela tem é namorado – e bem bonitão." A foto na mesa de trabalho de Lya confirma o julgamento da neta sobre o novo romance da escritora, um engenheiro carioca que hoje mora em Porto Alegre e sobre o qual ela é muito reticente. "Esse, graças a Deus, ninguém conhece", diz ela, numa referência aos seus casamentos anteriores com figuras públicas – o lingüista Celso Pedro Luft, pai de seus três filhos, e o psicanalista Hélio Pellegrino. Lya não quer nem divulgar o nome de seu novo amor, mas o define assim: "É um homem... bom, interessante, sensível, que vê em mim muito mais o ser humano do que a escritora, que cuida de mim, me entende, me conhece, me faz bem, me faz feliz, me deixa segura, conhece minhas fragilidades e meus segredos. Ele venceu a barreira da minha solidão e da minha reserva. Os verdadeiros encontros são sempre um mistério, não é?".
Lya não tem perdão para os desavisados que vêm perguntar "como é isso de se apaixonar aos 65 anos". "Tenho 65 anos, e não 165", costuma esclarecer, seca. "Ademais, não há nada de estranho em um homem se apaixonar por uma velha gordinha e sensual como eu. As mulheres estão muito chatas: só falam de dieta, e metade do tempo não se pode nem encostar nelas, tantas as cicatrizes de plástica", fulmina. Cirurgia, a escritora só fez uma, depois da morte de Hélio Pellegrino, para amenizar a expressão sombria que o luto deixara em sua fisionomia. Das caminhadas, ela não abre mão, por uma razão "de higiene". "Quero conseguir me levantar sozinha da cadeira aos 80 anos."
O que há de especial na biografia de Lya – e que se reflete na sua literatura – é justamente o que ela tem de tão comum à classe média brasileira: dinheiro curto (pelo menos até o sucesso de Perdas & Ganhos), mãe doente, saudade do pai que morreu cedo demais, casamentos desfeitos, viuvez, alguns filhos perto e outros longe, um olho na rotina da casa e outro sempre no trabalho, pouco tempo para a diversão e para a ginástica. Lya começou a publicar aos 41 anos, quando deu um basta à vida de professora universitária, e foi sempre uma escritora de vendas constantes, mas modestas.
Nunca pôde, portanto, deixar o trabalho como tradutora do alemão e do inglês, de autores que vão de James Joyce a Thomas Mann. Sem ele, não haveria como custear os 2.500 reais mensais da clínica em que mora sua mãe, de 89 anos, que sofre de Alzheimer e Parkinson, ou o salário ("muito bem pago, porque justiça social começa e se aprende em casa") das duas empregadas que tomam conta da residência ampla, construída por ela e Celso Luft nos anos 70. A atividade ali é grande. Quando Suzana, sua filha mais velha, se casou, Lya construiu um novo piso sobre a casa térrea, que foi se ampliando com a chegada das netas Isabela e as gêmeas Fernanda e Fabiana, de pouco mais de 1 ano.
Todas as manhãs, Nanda e Bibi já acordam chamando pela "fofó", que pára o trabalho quantas vezes for preciso para colocá-las no colo, beijar um machucado ou desarrumar seus cachos. Isabela, Suzana e Lya almoçam juntas todos os dias, sempre ao meio-dia – a família é madrugadora, e Suzana, que é pintora pela manhã, tem de correr para o seu consultório de pediatra à tarde. "Não sei o que eu faria sem a minha mãe", diz Suzana. O arranjo funciona na base do respeito mútuo: o térreo e o andar superior têm entradas separadas, e nem mãe nem filha fazem visitas uma à outra sem antes telefonar ou bater à porta, numa demonstração prática dos ensinamentos da escritora sobre ser uma mãe – e uma avó – presente, mas não intrometida.
Suzana tinha 20 anos quando Lya se separou de Celso Luft, e foi a primeira a se aproximar de Hélio Pellegrino. A personalidade calorosa do psicanalista não demoraria a conquistar também Eduardo, o filho mais novo, que hoje é filósofo, e André, o do meio, que é agrônomo e mora em Mato Grosso. "O fim de um casamento não precisa ser o fim de uma relação", diz Lya. "Minha convivência com Celso havia se metamorfoseado numa grande amizade. Eu me mudei para o Rio, com o Hélio, e também Celso foi viver com uma nova companheira", diz ela, rebatendo as versões mais titilantes que circularam pela imprensa. Na festa de noivado de Suzana, Celso e Hélio finalmente se conheceram pessoalmente – e passaram a noite toda engatados numa conversa animada, sem dar a mínima para as respectivas esposas.
Quando Pellegrino morreu de infarto, em 1988, após apenas três anos de convivência, a escritora ficou devastada. "Tinham de me dar comida na boca." Celso, os filhos e os amigos é que a apoiaram, moral e financeiramente, nessa época. É dela também que datam os poemas de O Lado Fatal – numa referência ao lado esquerdo do peito, o do coração –, o único livro que Lya não quer relançar agora que está de editora nova, a Record. "Só o publiquei porque estava meio louca", diz a escritora, para quem hoje os poemas representam uma brecha desconfortável em seu recato. Quatro anos após a morte de Pellegrino, Lya e Celso anularam o divórcio. Não muito depois, o lingüista sofreu um acidente vascular gravíssimo, e aí vieram os três anos de chumbo da escritora, durante os quais sua casa virou um hospital dos mais desesperançados, já que nunca houve chance real de recuperação para Celso.
A psicóloga argentina Martha Herzberg, grande amiga da escritora, morre de rir do jeito dela. "Lya ainda vai morrer estrangulada na echarpe do seu romantismo, como a bailarina Isadora Duncan", diverte-se. Lya confirma: "Por constituição, sou apaixonada. Quando gosto de uma música, passo meses ouvindo só ela, na sala, no carro e no escritório. Mas a paixão é uma coisa para poucos. Ela exige alguma audácia, ou alguma loucura". Nesse quadro, o pai de Lya, o advogado e juiz Arthur Germano Fett, e Celso Luft teriam sido os formadores, os companheiros de aventuras intelectuais e professores de afeto. Pellegrino foi o terremoto.
Entre todas essas lembranças, a que mais abala a escritora é a do pai, que morreu quando ela tinha 35 anos e, em suas palavras, dividiu sua vida ao meio. Nascida no interior do Rio Grande do Sul, numa família que emigrara da Alemanha no início do século XIX, mas ainda se considerava alemã, Lya desde cedo foi a "diferente". Em pequena, certa feita perguntou ao pai o que era aquilo que tanto se revolvia em sua cabeça. "São seus pensamentos", explicou ele, embevecido. Quando a filha quis saber quem era Sócrates, o pai não a mandou passear.
Explicou que o filósofo não deixara escritos, mas algo de seu pensamento podia ser compreendido "neste livrinho aqui". Era um exemplar deO Banquete, de Platão. Lya não entendeu lá muita coisa do livro, mas adorou. Para as tias e avós que a circundavam na então pequena Santa Cruz do Sul, esse tipo de curiosidade não causava tanto entusiasmo. A mãe de Lya, famosa pela beleza e pelo temperamento vivaz, estava ainda em luto pelo seu primogênito quando a filha nasceu. Estranhava mais ainda, portanto, a menina medrosa, quieta, sempre no mundo da lua e enfiada nos livros que tinha em casa. Lya também não lia pela cartilha das boas meninas alemãs de então: não sabia cozinhar (nunca aprendeu, confirmam os filhos), seus bordados eram pavorosos e ela era o que então se chamava uma criança desobediente.
As contravenções de Lya consistiam em mostrar a língua para a mãe, ou não esticar direito os lençóis da cama. Mas bastaram para que, mal despontasse a puberdade, ela fosse despachada para um internato. Foram apenas dois meses longe de casa até que o pai a trouxesse de volta, mas ela diz que o sentimento de traição se tornou inesquecível.
Tímida assim, e dividida entre a idolatria pelo pai e um amor que julgava não correspondido pela mãe, Lya não parecia uma candidata provável a afirmar sua independência. Mas conseguiu atravessar a infância e a adolescência fazendo o que bem entendia. Para começar, detesta o rótulo de "alemã" (ou "alemoa", como gostava de brincar Pellegrino). "Sou tão brasileira quanto qualquer baiana que venda acarajé em Salvador", diz. Aos 19 anos, espantou os pais, luteranos distraídos, convertendo-se ao catolicismo. Não muito mais tarde, conheceu o professor Celso Luft, que era dezoito anos mais velho e desde os 8 vivera num seminário.
Celso abandonou seus votos, aos 43, para se casar com Lya, não sem antes avisá-la de que não tinha o menor pendor para a vida prática. "Não tem problema", respondeu ela. "Eu cuido de tudo." E foi o que ela fez nos mais de vinte anos que durou o casamento. O marido trabalhava duro na universidade – onde Lya também lecionava –, mas não mentira quanto à falta de senso prático. "Um dia, quando eu já estava com o Hélio, ele ligou para minha casa no Rio de Janeiro para perguntar como se trocava o gás", diverte-se Lya.
Fiel ao que ensina hoje em seus livros, ela se preocupava menos em instigar os seus poucos talentos de dona-de-casa e mais em estar presente para os filhos. "Ela não é uma mãe, assim, básica, mas é de uma generosidade inacreditável. Nem na minha adolescência deixamos de nos entender", diz Suzana. André e Eduardo eram mais "tinhosos", e vez por outra voavam chinelos pela casa, na tentativa de conter o ímpeto dos moleques. "Mas tudo sempre terminava em esculhambação", diz Lya.
"No amor, seja com os filhos ou com o marido, o importante é dar a certeza do colo, do ombro, da escuta. Mas sem vigiar ou fiscalizar." Ouvir o carinho com que os filhos falam dela, ou ver as fotos da escritora cercada por seus sete netos, é a prova de que o mundo de Lya, embora tão atribulado quanto o de qualquer mulher brasileira de classe média, é mais harmonioso que o de muitas. Algo que os seus leitores sem dúvida descobriram neste último ano.
O que vem por aí |
Trechos do novo livro de Lya Luft, Pensar É Transgredir
Milestones
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"No Rio do Meio, escrevi entre outras coisas que também os homens sofrem de solidão – na medida da solidão (ou da infantilidade) de suas mulheres; que também querem ser amados, ouvidos, olhados, não só criticados e cobrados. Em palestras afirmo (para horror de muitas) que nós mulheres também sabemos ser muito chatas. Insatisfeitas, cobradoras, ásperas ou lamuriosas, frívolas e agitadas, chantagistas: nem sempre companheiras, poucas vezes cúmplices. (...) E deixamos sozinho o nosso homem, que bem ou mal é o que está do nosso lado. Pois se for ruim demais, por que ainda estamos com ele?"
"O silêncio nos assusta por retumbar no espaço vazio dentro de nós. Quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos espiam coisas incômodas e mal resolvidas, ou se enxerga outro ângulo de nós mesmos. (...) No susto que essa idéia provoca, queremos ruído, ruídos. Chegamos em casa e ligamos a televisão antes de largar a bolsa ou a pasta. Não é para assistir a um programa: é pela distração."
"O que precisa um casal para ser um bom casal, amoroso, alegre, criando pontes sobre as diferenças e resolvendo com bom humor as agruras do convívio cotidiano? Penso que o bom casal é o que SE GOSTA, com tudo o que isso significa: cumplicidade, interesse, sensualidade boa, e o difícil compromisso da lealdade."
Photodisc
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"Muitas vezes a salvação está na separação, embora casais não se separem apenas por frieza ou desamor. Às vezes houve tamanhas e tais transformações no curso do tempo que o mais digno, o mais libertador para todos, é uma separação com respeito e amizade. (...) Não acho um fracasso uma relação que dure dez, vinte anos e depois termine. O 'que seja eterno enquanto dure' de Vinicius não era cinismo, porém constatação de que um amor pode se transformar, não em rancor mas em um afeto que foge às definições e permanece mesmo depois de uma separação. Desde que não se abafe essa possibilidade debaixo de camadas de rancor e desejo de vingança."
"Para ser boa mãe não preciso me vitimizar: a mãe-mártir desperta culpa e causa aflição. Só uma pessoa que se respeita e valoriza pode realmente amar seus filhos, prepará-los para não serem almas subalternas, e lhes servir de eventual apoio."
"O desperdício de nossa vida, talentos e oportunidades é o único débito que no final não se poderá saldar: estaremos no arquivo morto."
"Fico imaginando que se a gente fizesse uma faxina em nossos compromissos e deveres, boa parte desapareceria ligeiro no ralo do bom senso. (...) Sobrariam alguns compromissos reais, dos quais não há como fugir: provavelmente saúde, prestação do apartamento, escola (a pública estando como está), e alguns outros (poucos). Comprar não é um dever, quando não se trata do indispensável ou do que faz bem. Comprar pode ser, e tem sido, em grande parte moda, mania, quase neurose. (...) Cada um que arrume o baú de suas prioridades, e faça a arrumação que quiser ou puder."
Trechos de Pensar é Transgredir
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O amor por Pellegrino |
Reprodução
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Com Hélio, numa das poucas fotos do casal: uma perda devastadora |
"Insensato eu estar aqui, e viva. O rosto dele me contempla vincado e triste no retrato sobre minha mesa;em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz. Insensato, isso de sobreviver: mas cá estou, na aparência inteira.
Vou à janela esperando que ele apareça e me acene com aquele seu gesto largo e generoso, que ao acordar esteja ao meu lado e que ao telefone seja sempre a sua voz.
Sei e não sei que tudo isso é impossível, que a morte é um abismo sem pontes (ao menos por algum tempo).
Sobrevivo, mas pela insensatez."
Trecho de O Lado Fatal
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Educação sentimental |
Amor, família e bem-viver, em Perdas & Ganhos
"De modo geral acho que nos contentamos com muito pouco. Não falo em dinheiro, carro, casa, roupa, jóias, viagens, que esses cobiçamos cada vez mais. Refiro-me aos tesouros humanos: ética, lealdade, amizade, amor, sensualidade boa."
"Se o outro servir de cabide para os nossos sonhos mais extravagantes de perfeição, o primeiro vento contrário derruba o pobre ídolo que não tem culpa de nada."
"'Mas o que pode haver de positivo em ficar velho?', perguntaram-me um dia. (...) As qualidades interiores vão sobressaindo, afirmando-se sobre as físicas. Ao contrário da pele, cabelos, brilho de olhar e firmeza de carnes, elas tendem a se aprimorar: inteligência, bondade, dignidade, escutar o outro. Capacidade de compreender. Mas é preciso que exista algo interior para sobressair: o desgaste físico será compensado pelo brilho de dentro."
"Mãe não tem de ser amiguinha, tem de ser mãe. Tem de ser aquela a quem filhos, mesmo adultos, sabem que podem recorrer quando tudo falhou, até os melhores amigos. Não ser a falsa jovenzinha competindo em maquilagem e roupas com a filha, ou parecendo seduzir colegas do filho – criando constrangimentos que ela ignora como se não vivesse no real. Conceitos pouco simpáticos, severos? A vida pode ser bem mais severa que isso."
"Não comandamos o destino das pessoas amadas, nem ao menos podemos sofrer em lugar delas, mas ter filhos é ser gravemente responsável. Não apenas por comida, escola, saúde, mas pela personalidade desses filhos: mais complicado do que garantir uma sobrevivência física saudável."
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O vício da paixão |
Não é brincadeira: atração é mesmo
uma questão de química
O sentimento mais sublime, e o mais exaltado pela arte e pela poesia desde que a arte e a poesia existem, tornou-se agora a fixação de categorias profissionais bem diversas: os antropólogos, os bioquímicos e os neurocientistas que se vêm dedicando a descobrir como, e por quê, o mundo só parece fazer sentido para nós se aquela determinada pessoa estiver olhando nos nossos olhos. As conclusões são no mínimo intrigantes. A paixão, sugerem esses pesquisadores, é um tipo de dependência química mais potente que o vício da heroína e capaz de causar tanto ou mais estrago do que este na paz de nossa vidinha diária. Mais: para alguns visionários, chegará o dia em que a incapacidade de sentir paixão (ou a propensão excessiva a se apaixonar) poderá ser tratada por remédios, como uma dor de cabeça ou uma bursite.
Há quatro anos, dois cientistas do University College de Londres fizeram um experimento curioso. Selecionaram estudantes que declaravam estar loucamente apaixonados e mapearam sua atividade cerebral. Surpresa: o amor romântico ativa uma área do cérebro muito menor do que a envolvida, por exemplo, na amizade. Trata-se também de uma região diferente daquela que se acende quando somos presas de outras emoções, como o medo ou a raiva. Os mecanismos neurais postos em marcha pela paixão são os mesmos que respondem pelas sensações de euforia que nos invadem ao consumir drogas. "Somos literalmente viciados em amor", disse Larry Young, pesquisador americano da Universidade Emory, num artigo sobre o tema na revista inglesa The Economist. Essa parte do cérebro é chamada de reptiliana – por ter começado a se desenvolver há cerca de 65 milhões de anos, muito antes que os mamíferos se propagassem sobre o planeta. Essa região neuronal está associada a nosso sistema de "recompensa". Young explica que, sem ele, os seres vivos poderiam se esquecer de comer, beber e fazer sexo, o que obviamente traria péssimos resultados para a sobrevivência das espécies. A razão pela qual sempre nos lembramos de fazer essas coisas é que elas nos proporcionam prazer e queremos voltar a esse prazer em todas as oportunidades possíveis.
Os mecanismos bioquímicos envolvidos nessas operações são, claro, incrivelmente complexos e estão longe de ser desvendados em sua totalidade. Também variam não só de espécie para espécie, mas de indivíduo para indivíduo. Isso sem falar nos fatores culturais imponderáveis que agem sobre o ser humano. Mas, de forma geral, o sexo libera no organismo fartas quantidades de uma substância neurotransmissora chamada dopamina – e aí sentimos prazer. No nosso caso, outras substâncias têm também papel preponderante na química da paixão, como a oxitocina e a vasopressina. Entre outras coisas, a oxitocina nos ajuda a identificar características individuais de um parceiro de forma que também elas se tornem fontes de prazer. Mulheres que acabam de dar à luz têm seu organismo inundado pela oxitocina. Ela ajuda a promover a formação dos laços de ternura entre mãe e filho. De certa forma, pode-se dizer que a oxitocina é ainda o hormônio do instinto maternal. Talvez atue com o mesmo poder agregador na união que se forma entre os parceiros sexuais. Esse coquetel químico, acredita-se, é o que nos faz sentir tomados por uma energia extraordinária, uma motivação quase obsessiva em obter a recompensa desejada, e sentimentos de elação ou tragédia conforme nos julguemos mais próximos ou mais distantes dessa recompensa. Flechados por esse Cupido neuroquímico, enfim, comportamo-nos todos mais ou menos como a Scarlett O'Hara de ...E o Vento Levou:somos incapazes de tirar Rhett Butler da cabeça, não aceitamos "não" como resposta e movemos montanhas, se necessário, para estar nos braços dele mais uma vez.
A pesquisadora Helen Fisher, da universidade americana Rutgers, acaba de lançar um livro – Why We Love: the Nature and Chemistry of Romantic Love, ou Por que Amamos: a Natureza e a Química do Amor Romântico – que ilumina consideravelmente esse cenário. Helen acredita que o amor ocorre em três diferentes essências: desejo, amor romântico e ligação duradoura. Elas se manifestariam conforme o efeito pretendido por nossa natureza – respectivamente, o sexo, a formação de pares ou a criação da prole. Apesar de compartilharem alguns mecanismos, essas essências são produzidas por sistemas independentes entre si. É aí que mora o problema: mesmo sendo independentes, elas freqüentemente trabalham nas mais variadas combinações. Pode-se sentir, simultaneamente, uma ligação profunda com um parceiro estável, paixão por uma segunda pessoa e desejo sexual por uma terceira – ou quarta, ou quantas forem. Em sociedade, esses impulsos costumam ganhar o nome de traição e promiscuidade, fonte de infindáveis dores de cabeça e, em caso de descuido, de filhos inesperados. Por isso mesmo eles são simultâneos. Conclui Helen Fisher: "Não fomos construídos para ser felizes, mas para nos reproduzir".
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