sábado, 17 de março de 2012

China: Uma voz dissidente que sobrevive ao tempo
Por Sharon LaFraniere, The New York Times News Service/Syndicate

China: Uma voz dissidente que sobrevive ao tempo
Pequim _ Mesmo aos 106 anos de idade, Zhou Youguang é o tipo de pensador criativo que os líderes chineses frequentemente exigem que o governo cultive para que seu país seja mais que o chão de fábrica do mundo.
Portanto, é curioso que ele personifique uma contradição no cerne desta premissa: a noção de que os livres-pensadores devem ser venerados, a menos ou até que questionem a legitimidade do Partido Comunista.
Zhou é o inventor do Pinyin, o sistema de escrita romanizada que adaptou a antiga linguagem escrita chinesa aos tempos modernos, ajudando a China a praticamente erradicar o analfabetismo. Ele era um dos líderes da tradução chinesa da Encyclopaedia Britannica nos anos 1980, e escreveu cerca de 40 livros _ o mais recente foi publicado no ano passado.
Os líderes chineses poderiam exaltá-lo como um modelo para os jovens, a não ser por um defeito: Zhou não apoia o sistema unipartidário e não acredita que ele possa durar. Portanto, ele continua sendo pouco celebrado dentro da China. Conforme afirmou o jornal estatal China Daily em 2009, seu nome deveria ser conhecido por todos, mas é praticamente ignorado.
Um exemplo contundente do desconforto do partido em relação a ele: quando o governo convocou mais de 500 especialistas em 2009 para comemorar o lançamento da segunda edição chinesa da enciclopédia, Zhou foi desconvidado no último minuto. Os amigos dizem acreditar que isso ocorreu porque o chefe de propaganda do partido, Li Changchum, não desejava apertar sua mão.
Zhou não se importa com esse tipo de afronta, nem se sente intimidado por ela. Ele começou relativamente tarde com as controvérsias, voltando sua atenção para a política somente depois de se aposentar de seu emprego em tempo integral aos 85 anos.
Mas ele está recuperando o tempo perdido. Durante um recente bate-papo em seu estúdio com prateleiras cheias de livros, Zhou afirmou que a democracia é "a forma natural da sociedade moderna". Ele rejeitou o argumento de que a China não está preparada para ela. "A democracia pode existir independentemente do grau de desenvolvimento", afirmou. "Basta observar a primavera árabe."
Zhou Youguang, 106, in his study in Beijing, Dec. 2, 2011. Zhou is the inventor of Pinyin, the Romanized spelling system that linked China's ancient written language to the modern age and helped China all but stamp out illiteracy. (Shiho Fukada/The New York Times)
Muitos intelectuais chineses compartilham essa opinião. Mas os mais sinceros são com frequência os idosos _ pessoas mais velhas ou aposentadas dos quadros do Partido Comunista que se apoiam na reverência chinesa aos idosos ou que já deixaram de se preocupar com as consequências.
A mídia estatal chinesa ignora as opiniões políticas de Zhou, mas não o seu papel como o arquiteto do Pinyin. Há três anos, ele foi a figura de destaque em um documentário de uma hora sobre o Pinyin realizado pela rede estatal CCTV.
Os ideogramas chineses não correspondem diretamente aos sons. O alfabeto fonético Pinyin permitiu que os estudantes relacionassem as palavras e a fala com mais facilidade.
"Isso teve um enorme impacto na alfabetização", afirma Victor H. Mair, professor de língua e literatura chinesa na Universidade da Pensilvânia. Todos os estudantes chineses agora começam a ler e a escrever utilizando o Pinyin antes de passar aos ideogramas.
Bem humorado, mas irônico e rigidamente imparcial, Zhou trabalha em uma pequena mesa de madeira em um apartamento do governo no terceiro andar de um prédio sem elevador e com paredes de concreto sem pintura. Seu colega de longa data Chen Zhangtai, de 80 anos, afirma que Zhou concluiu que uma reforma iria perturbá-lo demais.
Ele descreveu Zhou como a personificação de um "verdadeiro erudito". E acrescentou: "Ele parece estar sempre em paz com o mundo".
E continuamente fascinado por ele. Em seu blog, ele comenta desde a modernização do confucionismo até a história da rota da seda, passando pela nova classe média da China. A tela do computador machuca seus olhos, mas ele devora jornais e revistas estrangeiras. Um famoso artista chinês lhe deu o apelido de "velhinho na moda".
Zhou nasceu em 13 de janeiro de 1906, quando a dinastia Qing governava e as mulheres amarravam os pés. Filho de um funcionário da dinastia Qing, ele se casou com a filha de uma família abastada e foi trabalhar em um banco.
Depois da invasão japonesa de 1937, sua família foi forçada a fugir para o interior para escapar dos bombardeios japoneses em Chongqing, a capital chinesa na época da guerra. Sua filha morreu de apendicite aos 5 anos de idade.
Mesmo nunca tendo se afiliado ao partido comunista, a simpatia de Zhou pelo partido data desse período. Em Chongqing, ele conheceu Zhou Enlai, na época o principal emissário do partido para o mundo exterior _ uma relação que mais tarde ajudou a salvar sua vida.
Em 1946, Zhou e sua família se mudaram para Nova York, onde ele representou o Banco de Crédito e Poupança Xinhua. Ele viajou pelos Estados Unidos em luxuosos carros Pullman, embarcou para a Europa no transatlântico Rainha Elizabeth e recusou ofertas de bancos ocidentais. Sua vida intelectual era igualmente rica: Ele teve várias conversas longas com Albert Einstein.
Mas pouco antes da vitória comunista na guerra civil chinesa em 1949, Zhou trouxe sua família de volta. Ele ensinou economia em uma universidade de Shanghai e estudou linguística como hobby.
Em 1955, Zhou Enlai, que na época era primeiro ministro, o chamou para Pequim. O partido queria transformar o Mandarim na língua nacional, simplificar os ideogramas e desenvolver um novo alfabeto fonético. O filho de Zhou, o astrofísico Zhou Xiaoping, afirmou que seu pai protestou, dizendo que não passava de um amador. Responderam-lhe: "São todos amadores".
Os convites chegaram no momento certo. No ano seguinte, o diretor da campanha antidireitista de Mao passou a perseguir os economistas educados no Ocidente. Um dos melhores amigos de Zhou, o chefe do departamento de pesquisa econômica, cometeu suicídio. O aluno predileto de Zhou fez o mesmo.
Eu seu novo emprego, Zhou encontrou uma tremenda confusão, mas também as bases para seu trabalho. No final dos anos 1500, o jesuíta italiano Matteo Ricci formulou um sistema de romanização do chinês. Muitos falantes de inglês já estavam utilizando o sistema britânico Wade-Glies, desenvolvido no século XIX. Linguistas chineses haviam desenvolvido novas alternativas.
A equipe de Zhou discutiu incessantemente: como lidar com os homônimos que são abundantes no idioma chinês; como indicar os quatro tons do Mandarim; deveriam utilizar o alfabeto cirílico, o japonês ou o romano; ou deveriam inventar um novo alfabeto chinês com base nas formas dos ideogramas.
Zhou escolheu o alfabeto romano para melhorar a conexão da China com o mundo exterior. Em 1958, após três anos de trabalho, o Pinyin _ literalmente "juntar sons" _ foi concluído e rapidamente adotado.
A Revolução Cultural que começou em 1966 exterminou a crença remanescente de Zhou no comunismo. Ele foi humilhado publicamente e enviado para um campo de trabalhos forçados por dois anos. Após seu retorno, ele se juntou novamente ao governo, lutando para que o Pinyin fosse adotado como padrão internacional. Segundo Mair, a ONU concordou em 1986.
Zhou diz que os ideogramas chineses ainda existirão por muitos séculos. Mas, para seu deleite, o Pinyin provou ser cada vez mais útil. Os chineses agora utilizam programas que convertem o Pinyin em ideogramas para enviar mensagens de texto no celular, postar em microblogs na Internet e escrever e-mails.
O próprio Zhou utiliza uma máquina de escrever que converte Pinyin em ideogramas para escrever críticas cada vez mais afiadas ao partido em ensaios e em seu blog que, até o momento, não foi censurado.
A respeito de Mao, ele disse em uma entrevista: "Eu nego que ele tenha feito algo de bom". Sobre o massacre na Praça da Paz Celestial em 1989: "Tenho certeza que um dia a justiça será feita". A respeito do apoio popular ao Partido Comunista: "O povo não tem liberdade para se expressar, portanto, não temos como saber".
Quanto à promoção da criatividade no sistema comunista, Zhou disse isto em um livro de ensaios de 2010: "Invenções são flores que crescem no solo da liberdade. A inovação e a invenção não crescem segundo ordens do governo".
O livro foi proibido na China assim que o primeiro lote de cópias foi impresso.
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