quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

MAURITÂNIA: UM ESTADO-ESCRAVAGISTA NA ÁFRICA COM APOIO INTERNACIONAL



A escravidão é comum e passada por gerações na desértica Mauritânia (Foto WikiCommons)


Tradição milenar de se manter escravos por gerações tornou o país o maior centro da prática ilegal no mundo, com cerca de 151 mil pessoas sendo escravas
Por New Internationalist | Tradução: Vinicius Gomes
Nos vastos e esparsamente povoados desertos da Mauritânia, na África, a escravidão é abundante – apesar de ter se tornado ilegal em 1981 e um crime contra a humanidade em 2012.
A Mauritânia, na costa oeste do deserto do Saara, tem a maior taxa de escravidão per capita, de acordo com o Índice Global de Escravidão de 2013. Compilado por uma fundação de caridade antiescravidão – a Walk Free Foundation –, o índice estimou que 151 mil pessoas, quase 4% da população do país, podem estar vivendo em regime de escravidão. Estimativas de outros grupos chegou a elevar esse número em quase 20%.
Ter um escravo na Mauritânia primeiramente é visto como possuir um bem pessoal, com essa condição sendo inclusive passada de geração para geração, movimento que se originou nas antigas caçadas por escravos.
Ela também está ligada ao racismo. A sociedade mauritana é feita de três principais grupos étnicos: os haratins, afro-mauritanos e os mouros brancos (árabes). A escravidão hereditária é perpetuada porque os haratins – africanos negros roubados de suas vilas séculos atrás durante as guerras afro-árabes – são tradicionalmente vistos como propriedades dos mouros brancos.
Abidine Ould-Merzough, um ativista dos direitos humanos e membro de uma comunidade haratin vivendo hoje na Alemanha, diz que os mouros brancos – uma minoria na Mauritânia – possuem um desproporcional poder político: “Eles querem manter a comunidade haratin subdesenvolvida, se eles permitirem que sejam educados, eles se recusarão a serem escravos e se tornarão competidores por poder”, diz ele.
A doutrinação é uma peça chave para a escravidão na Mauritânia, com ensinamentos religiosos sendo usados para justificar as práticas escravagistas. “Existe uma interpretação do Islã que diz que a sociedade é dividida em duas – mestres e escravos”, diz Ould-Merzough. “Os escravos aceitam isso e creem que seu status é uma vontade divina.”
Estrada na fronteira com o vizinho Senegal
Foto: WikiCommons
Alguns críticos dizem que o papel geopolítico da Mauritânia (o país é visto como um importante aliado ocidental contra a Al-Qaeda no norte da África) fez com que a escravidão no país seja ignorada. Quanto ao governo mauritano, ele enfatiza que o fato de a escravidão ser proibida e diz que qualquer caso que for descoberto será rigorosamente punido.
Apesar das histórias chocantes e das duras evidências estatísticas sobre a predominância de escravidão, existem desenvolvimentos positivos à frente. “O movimento anti-escravagista na Mauritânia está se tornando cada vez maior e isso realmente me deixa otimista”, diz Saidou Wana, ativista mauritano dos direitos humanos, baseado nos EUA. “Existe um progresso acontecendo: as pessoas estão acordando e começando a entender a situação. E isso está acontecendo através da fronteira, com os árabes se envolvendo também.


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A ESQUERDA E O GOLPE DE 1964


05/02/2014 - Copyleft 

Após o golpe, os grupos mais radicalizados se deram conta de que a defesa da democracia era um valor fundamental e que deveriam ter se mobilizado na sua defesa.

por Emir Sader em 05/02/2014 às 16:22

Ao longo de quase todo o período prévio ao golpe de 1964, a força política da esquerda estava quase que concentrada apenas no Partido Comunista e nos movimentos sociais ligados a ele, especialmente o movimento sindical. À sua esquerda existia um pequeno grupo trotskista – de origem posadista – e alguns setores heterogêneos, no Partidos Socialita e no PTB.


A orientação predominante era nacionalista, que centrava a luta basicamente contra o latifúndio e o imperialismo, considerados os obstáculos para que o Brasil superasse o pré-capitalismo em que se encontrava e pudesse abrir espaço para o desenvolvimento pleno do capitalismo industrial. Especialmente durante o governo de Joao Goulart, essa orientação predominou.

O Plano Trienal, formulado por Celso Furtado, se centrava politicamente na reforma agrária e em medidas de controle do capital estrangeiro no país. A reforma agrária permitiria combater o latifúndio, expandir um mercado interno para a indústria, ao mesmo tempo que estender a sindicalização dos trabalhadores rurais. As medidas de limitação do capital estrangeiro – como, por exemplo, a limitação da remessa de lucros -, favoreceriam as indústrias nacionais e o desenvolvimento autônomo do país.



Nascido Homero Rómulo Cristalli Frasnelli na Argentina em 1912, era filho de imigrantes italianos. Morreu em 1981.

Era uma concepção segundo a qual o Brasil precisaria se livrar dessas travas para poder se desenvolver em termos capitalistas. O país teria ainda pela frente todo um período de desenvolvimento industrial, liderado pela burguesia nacional – que teria profundas contradições com o imperialismo e com o latifúndio –, como objetivo fundamental daquele período político.

No começo da década de 1960, sob o impacto da vitória da Revolução Cubana, mas também do maoísmo, foram fundadas outras organizações radicais na esquerda brasileira. Primeiro a Polop – Politica Operária -, marxista, que levantou, pela primeira vez, a proposta de um programa socialista para o Brasil. Em seguida o PC do B, a primeira cisão maoísta no mundo. Depois a AP – Ação Popular -, radicalização da JUC e da JEC, organizações cristãs de juventude.

Elas tinham em comum a crítica do reformismo do governo e do PCB, à sua concepção de “revolução por etapas”, à sua confiança – e ilusão – no caráter antimperialista e anti-latifundiário da burguesia nacional e na própria existência desta. Denunciavam os riscos de golpe militar contra o governo e propunham formas de luta radical.

Conforme se aproximava a perspectiva de golpe militar, as posições na esquerda também foram se extremando. Francisco Julião começou a organizar um esquema de resistência no campo. Sargentos, tenentes, marinheiros, começaram a se organizar e reivindicar direitos políticos. A direita se mobilizava, com apoio dos EUA, entidades empresariais, políticas, midiáticas e religiosas, se articulavam ativamente, com mobilizações populares, a favor do golpe.

As posições eram diferenciadas dentro da esquerda. O PCB e os outros setores nacionalistas confiavam na oficialidade progressista dentro das FFAA e no apoio popular do governo. Subestimavam o golpe e, caso viesse, confiavam na capacidade de resposta tanto dessa oficialidade, quanto do movimento popular organizado.

O PCB e os setores que apoiavam praticamente de forma incondicional o governo Jango deixaram o movimento popular desarmado diante do golpe e não foram capazes de organizar a resistência quando o golpe veio. Sua estratégia havia fracassado e ficaram desconcertados.

Os grupos radicais consideravam o golpe praticamente inevitável (devido às “ilusões do reformismo na via pacífica e na existência de uma burguesia nacional e democrática”), o viram como uma confirmação das suas previsões. Mas tampouco defenderam a legalidade existente, não se dando conta no brutal retrocesso para todos – a começar pelos movimentos populares – que o golpe representava.

A posição mais correta foi a de Brizola, que propôs a organização popular mediante grupos dos onze, que congregasse militantes partidários, militares e setores dos movimentos populares, para resistir ao golpe e, caso ocorresse, se constituíssem em organizações da resistência democrática à ditadura. Dispunha de uma rádio – Mayrink Veiga – e criou um jornal, dando inicio a um poderoso movimento popular alternativo (ao qual aderiu a Polop). Combinava a resistência antes do golpe a um desdobramento já na ditadura, caso o golpe triunfasse.

Veio o golpe e nada foi poupado pela repressão: intervenção em todos os sindicatos e arrocho salarial; repressão impiedosa a todos os militantes de esquerda, sem importar o partido; a universidades, entidades culturais, movimentos populares, entidades jurídicas, o próprio Parlamento e o Judiciário.
Houve um brutal retrocesso nas condições políticas e sociais do pais, assim como nas condições de luta popular.

Os grupos mais radicalizados se deram conta de que a defesa da democracia era um valor fundamental, que deveriam ter se mobilizado na sua defesa, mesmo com posições críticas diante do governo Jango. Apesar das propostas positivas que tinha formulado, Brizola saiu do pais e ficou eclipsado politicamente por um bom tempo. O PCB perdeu sua força fundamental – a estrutura sindical – e foi envolvido em profundos debates internos.

A primeira publicação que fez um balanço do golpe militar foi a revista francesa Le Temps Modernes, dirigida por Sartre. Nela havia uma quantidade de artigos – incluso do FHC – que nada acrescentavam sobre as razões do golpe e as perspectivas com a ditadura militar. Celso Furtado se arriscou a um prognóstico: como associava estreitamente desenvolvimento econômico – e particularmente industrial – e democracia, previa que o Brasil retrocederia a um modelo primário exportador.

As análises mais pertinentes e que, por isso, foram as que mais circularam na esquerda, foram as de Ruy Mauro Marini – dirigente da Polop naquele momento. Contradiçoes do Brasil contemporâneo, um dos seus artigos, diz que o desenvolvimento do capitalismo brasileira estava num impasse: o país vivia um processo de democratização que se chocava com os interesses do grande capital, a quem interessava desenvolver não setores da economia vinculados ao consumo popular, mas aqueles ligados à exportação e ao consumo de luxo. O golpe fez triunfar esta possibilidade, reprimindo o consumo popular – com o arrocho salarial –, ao mesmo tempo que favorecia o ingresso de capitais estrangeiros, facilitava a remessa de lucros e a obtenção de empréstimos para as empresas privadas. O “santo” do  “milagre econômico” foi o arrocho salarial e a intervenção nos sindicatos. Os textos de Marini circularam amplamente na esquerda como a melhor explicação do golpe e do que sucederia no país durante a ditadura militar.

O outro texto que circulou amplamente foi Revolução na revolução, de Regis Debray, uma versão simplificada e tentadora do que havia acontecido em Cuba, que contribuiria de forma importante para que a visão militarista triunfasse na esquerda. Depois da derrota deste, em 1971, o campo ficou aberto para que as correntes liberais se tornassem hegemônicos na oposição à ditadura, definindo o caráter conservador desta.


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ESTRANHOS NO PARAÍSO



Mariano Kairuz, para o Other News 03/02/2014 - Copyleft

Passaram-se 47 anos da morte de Walt Disney e, até hoje, nunca se tentou retratar o pai do Mickey no cinema. Mas um novo filme promete fazê-lo.



Passaram-se 47 anos da morte de Walt Disney e, até hoje, nunca se tentou sequer retratar o pai do Mickey em uma produção mainstream. São muitos os motivos: a Disney é uma corporação cuidadosa e agressiva quanto à proteção da figura do pai fundador e ninguém se atreveu a enfrentar seu poder. Mas, surpreendentemente, dois anos atrás a empresa decidiu dar seu aval e até financiar 'Walt nos Bastidores de Mary Poppins' (segundo o título original, Saving Mr. Banks) — filme que estreia na próxima semana na Argentina com o título El sueño de Walt (O sonho de Walt). O roteiro foi produzido de maneira independente e evoca a relação entre P. L. Travers, autora de Mary Poppins, e Walt Disney, com ambiguidades surpreendentes. Tem um olhar sobre esse ícone cultural que não é crítico, mas que também não é cândido. Sem ser revolucionário, atreve-se a humanizar o mito. Quase ao mesmo tempo em que 'Walt nos Bastidores de Mary Poppins' estreia nos cinemas do mundo, passou-se a ser possível conseguir online 'Escape From Tomorrow', um estranho filme de terror filmado clandestinamente na Disney World de Orlando, no qual muitos veem uma representação do lado negativo do reino encantado. Entre a versão oficial e as teorias paranóicas, entre o domínio corporativo e o poder simbólico, esses filmes dão margem a uma possível releitura de um dos mitos mais importantes da cultura popular do século XX.
 
Na última entrega do Globo de Ouro, a grandiosa Emma Thompson esteve presente para anunciar o prêmio de melhor roteiro com um Martini em uma mão e seus sapatos de salto na outra. Diante de um clamor coletivo e de aplausos, censurou os presentes (“stop it, stop it”) em seu melhor estilo de tutora inglesa de filme, como se invocasse a personagem pelo qual estava indicada na categoria de melhor atriz de comédia: P. L. Travers, a autora de Mary Poppins, que muito relutantemente acabou vendendo os direitos de sua obra mais famosa à Disney. 
 
Alguns dias antes, na cerimônia de outra das entregas da longa temporada de prêmios (que culmina com o Oscar, no início de março), Meryl Streep fora a encarregada de anunciar, diante da National Board of Review, o reconhecimento a Emma Thompson por seu trabalho em Walt nos Bastidores de Mary Poppins, em que interpreta Travers. O filme – que estreia nesta semana na Argentina com o título El sueño de Walt – descreve a complicada relação entre Travers e Walt Disney em torno da adaptação da então já reconhecida criação da escritora, a da babá mágica. Streep não teve ideia melhor do que aproveitar a ocasião para acusar Disney de ter sido racista, misógino e antissemita, entre outros atrativos. Sempre se referindo a Thompson como uma “artista famosa”, “praticamente uma santa” e “uma feminista feroz, devoradora de homens, como eu”, antes de dedicar um poema a ela, se dispôs a mencionar a imagem sagrada, mas sempre questionada, do criador do rato Mickey. Para isso, citou uma declaração de Ward Kimball (um dos veneráveis de Os nove anciões, os veteranos que transformaram a 'companhia do rato' na vanguarda do desenho animado em seu período clássico), em que o homem dizia que Disney não confiava “nem nos gatos, nem nas mulheres”. Em seguida, mencionou uma carta escrita por Disney no final dos anos 30, em que respondia a uma mulher que concorria por uma vaga em sua escola de treinamento explicando que todos os trabalhos qualificados para realizar um desenho animado em sua companhia eram totalmente realizados por homens. 
 
A intervenção de Streep foi recebida com certo espanto, e os especialistas na história de Walt Disney – e alguns de seus vários biógrafos – afirmaram que o que a atriz havia dito era desnecessário, além de incorreto historicamente. Mas, em todo caso, o que Streep fez – que foi, segundo consta, a primeira atriz convidada para interpretar Travers, mas recusou – foi, a despeito de qualquer consideração, expressar a rejeição e a desconfiança que Walt nos Bastidores de Mary Poppins despertou no setor da indústria e da crítica cultural, por ser um filme oficialmente coproduzido pela Walt Disney Pictures e que, previsivelmente, tentaria limpar a imagem do fundador da companhia.
 
Uma vez mais, trata-se do ataque sobre a figura de Walt Disney – “o americano perfeito”, segundo o título irônico da ópera de Philip Glass – como uma espécie de embate contra um ícone da corporação norte-americana, da banalização e da colonização cultural, etc. Entretanto, para além de algumas considerações e reservas que podem ser feitas sobre Walt nos Bastidores de Mary Poppins, o filme é mais do que uma mera hagiografia como muitos esperam. De fato, é algo bem melhor, uma aposta suficiente e interessantemente ambígua por se tratar do primeiro (e tardio) retrato do mesmíssimo Disney em uma ficção mainstream. Um retrato originado de fora do estúdio, mas eventualmente aprovado e apoiado por ele, que escolhe mostrá-lo humano e vagamente imperfeito, em vez de se apegar a uma imagem etérea, intocável.

De Sidney a Disney 

O trabalho de Emma Thompson em Walt nos Bastidores de Mary Poppins é formidável. A sua Travers é tudo aquilo que os depoimentos coletados sobre a poeta e escritora dizem sobre ela; que era uma mulher áspera, de trato difícil, nada afetuosa e até beligerante; que se opôs, desde o primeiro momento, a que Walt Disney transformasse sua criação mais famosa e apreciada em outro de seus “desenhos animados bobos”. E que ela colocou todos os obstáculos que pôde durante a pré-produção do filme, até que a necessidade econômica obrigou que se entregasse. O título em espanhol, El sueño de Walt, inverte um pouco a intenção original, passível de ser traduzida como “Salvando o senhor Banks”, já que transfere o foco de um personagem fundamental da vida e da obra de Travers à obstinação e ao ego de Walt Disney, o dono do império, o homem que “não ia aceitar um não como resposta”. O filme tem duas narrativas paralelas até descobrirmos que, na verdade, ambas são a mesma história: a de como Mary Poppins esteve diretamente inspirada na triste infância de sua autora.
 
A história de Mary Poppins – livro que, em 2014, completa 80 anos de sua primeira edição, e o filme, que em agosto deste ano chegará a seu cinquentenário – começou em 1913, em Nova Gales do Sul, Austrália, com uma menina de 13 anos chamada Helen Goff. Foi encarregada pela mãe de cuidar de suas irmãzinhas enquanto esta se afastava com intenções suicidas. O pai de Helen, Travers Goff, alcoólatra incurável, havia morrido seis meses antes, deixando a viúva quebrada econômica e emocionalmente. O homem, além disso, tinha sido o melhor amigo de Helen, sua filha mais velha – seu maior inspirador e seu iniciador no mundo da poesia e da literatura para crianças e para adultos. Bancário, Travers forçou sua família em seus últimos anos a lhe acompanhar e a se mudar de acordo com cada um de seus novos empregos. Com a sua morte, aos quarenta e poucos, e com a fracassada tentativa de suicídio da viúva, apareceu, na desértica situação em que as quatro viviam abandonadas, a tia Ellie, uma mulher endinheirada que vinha de Sydney disposta a resgatar a família. Dura em sua conduta, imperativa, mandona, foi Ellie quem colocou ordem no lar destruído. Em suas características e atitudes, Mary aparece esboçada pela primeira vez. “Se querem meus dados biográficos – disse Travers em uma das poucas entrevistas que concedeu – Mary Poppins é a história da minha vida”. 
 
Morando em Sydney, Helen passou a se chamar Pamela Lyndon Travers (PL, se supõe, para esconder seu gênero). Em sua primeira juventude, tentou a sorte na atuação, na dança, no teatro itinerante e no jornalismo. Segundo sua biógrafa Valerie Lawson, autora de Mary Poppins, She Wrote (Mary Poppins, Ela escreveu), ela teve uma vida complicada, porém interessante. Manteve longas relações com homens e mulheres, procurando em vão a figura do seu pai. Instalada na Europa, foi criando uma áspera identidade de senhora inglesa, a ponto de muitos se surpreenderem ao saber que ela era de origem australiana. Publicada em 1934, Mary Poppins, sua primeira obra destinada a crianças, foi também o seu primeiro êxito massivo. “Em Mary Poppins – escreve Lawson –, Travers criou muito mais do que a versão branda do filme da Disney; uma personagem tão peculiar quanto amável, tão ameaçadora quanto reconfortante”, que tinha, evidentemente, muito da tia. Walt nos Bastidores de Mary Poppins enfatiza os paralelos visualmente, assim como o senhor Banks, o pai da família protagonista de seu livro, estava diretamente inspirado em uma recordação amorosa de Travers Goff. Daí sua longa reticência em entregar sua criação mais valiosa àquilo que, para ela, não era outra coisa senão um comércio de bobagens infantis.
 
As tentativas de Walt Disney de convencer Travers a permitir a filmagem de Poppins durou pelo menos vinte anos, começando durante a Segunda Guerra, quando ela estava instalada em Manhattan trabalhando para o Ministério Britânico de Informação. Como bem narra o filme, Walt soube da existência de Mary Poppins por meio de suas filhas fanáticas. Ele leu o livro, marcou os capítulo que mais lhe interessavam e prometeu às meninas que faria um filme. “E eu, Pamela, nunca quebro uma promessa que faço às minhas filhas”. 

No início dos anos 60, quando Disney começou a produção do filme, convocando o roteirista Don Da Gradi (autor de, entre outros, A dama e o vagabundo e que, em Walt nos Bastidores de Mary Poppins, é interpretado pelo grande Bradley Whitford, do filme Nos Bastidores do Poder) e os compositores Richard e Robert Sherman, ainda não estava certo sobre os direitos. Havia somente uma opção para a adaptação do livro, com um roteiro em que Travers teria a garantia de algo que Disney não dava a ninguém: a aprovação final. Travers fez mil rodeios antes de aceitar ir a Los Angeles – “esta cidade que cheira a cloro e a transpiração”. Até ali, chegou já hesitante em relação à ideia de incorporar canções e desenhos animados a sua obra, e à ideia de transformar a sua tutora em uma moça encantadora, leve e alegre (e bela, contrariando o que sua descrição literária indica), que soluciona as coisas com poderes mágicos em vez do rigor em que P.L. tanto acreditava. Estava tão indisposta, que colocou sobre os músicos, o roteirista e os produtores uma série de objeções e exigências, que passaram de caprichosas a absurdas, como, por exemplo, que excluíssem a cor vermelha do filme. Opôs-se ao casting – ainda que se saiba que talvez tenha aprovado a jovem e charmosa estreante Julie Andrews – e, particularmente, a Dick Van Dyke (que foi o limpador de chaminés, com um sotaque inglês que, conforme o próprio ator reconheceu anos depois, soa embaraçosamente falso em alguns momentos), além de uma infinidade de detalhes.

Mas o que, segundo registra o filme, realmente incomodou Travers em um primeiro momento foi que sentia que os roteiristas condenavam moralmente o Sr. Banks em sua descrição – o pai da família no lar em que a babá chega, o bancário modelo, hierárquico, preso às suas rotinas e com muito pouco tempo para seus filhos. Depois de tudo, Banks não era outro senão 'papai' e, argumenta Travers, no filme, “um pai faz o que pode, e criar um filho pode ser uma tarefa muito difícil que nem todos têm condições de assumir”. 

Aparentemente, conservaram-se precisos e fiéis os relatos sobre a relação entre a autora, Disney e os músicos e roteiristas, já que a própria Travers solicitou que as seções conjuntas fossem gravadas. Quando a Disney entrou como coprodutora do filme, os arquivos ficaram à disposição dos responsáveis pelo material. E, de fato, é possível escutar a voz de Travers em uma dessas gravações durante os créditos finais. 
 
O homem que fuma
 
Pouco mais de uma década atrás, o produtor australiano Ian Collie produziu um documentário sobre Travers chamado The Shadow of Mary Poppins (A sombra de Mary Poppins), trabalho que o convenceu que uma cinebiografia ficcional seria mais interessante para a pouco conhecida história da escritora. Em pouco tempo, somaram-se ao projeto as roteiristas Sue Smith e Kelly Marcel, e a BBC entre os coprodutores. No final de 2011, a obra estava nas listas anuais de “melhores roteiros não produzidos”, que circulam por Hollywood regularmente. Foi quando Sean Bailey, presidente de produção dos estúdios de Walt Disney, se deu conta de sua existência. Um pouco preocupados, os executivos da companhia discutiram qual deveria ser a ação para tomar a frente daquela que poderia ser a primeira representação de Walt Disney em uma produção com essas características. Entre as opções, estava a de comprar o roteiro e encaixotá-lo para garantir que o filme nunca fosse feito. A outra era produzi-lo ou coproduzi-lo eles mesmos, a única maneira de supervisionar de perto o que fariam com a figura do pai fundador. O fato é que Bob Iger, CEO da Disney, achou o roteiro interesse e fez a jogada mais inteligente que estava a seu alcance para proteger seus interesses: convenceu Tom Hanks a interpretar WD. Assim, estaria certo de que a telona refletiria essa qualidade com a qual o império do Mickey sempre ligou seu criador: a do homem perfeitamente comum, com uma criatividade extraordinária.
 
Thompson descreve o papel de Travers como um dos mais difíceis que interpretou (“uma mulher de grande complexidade e contradição, que escreveu um grande ensaio sobre a tristeza, que teve uma infância muito dura, motivo por que passou toda sua vida em um estado de inconsolabilidade determinante”). Mas o que, para muitos, foi especialmente notável, o mais inesperado, foi que, em se tratando de um filme não apenas avaliado, mas parcialmente financiado pela mesmíssima Walt Disney Pictures, com cenas filmadas no parque original da Disneylândia, inaugurado em 1955 (o de Los Angeles, que tentava reproduzir a “experiência do pequeno povoado do centro-oeste americano”, do Missouri, estado onde Walt Disney foi criado), Disney, o homem, o personagem, não tenha sido endeusado pelo roteiro. E que o relato dos infinitos obstáculos em sua relação com Travers não tenha sido (de modo geral) suavizado. Basicamente, que não conte o que qualquer um esperaria de uma companhia tão cuidadosa com sua imagem e com seu mito – que seu fundador finalmente havia conquistado Travers com seu infinito carisma. Mas sim que encontre matizes do homem de corporação. Um lado B autorizado, a 47 anos de sua morte, de Walt Disney.

Isso – essa “permissividade”, essa abertura da empresa ao retrato desses matizes – não existiu desde sempre. Walt Disney morreu em dezembro de 1966, quando o crítico e historiador norte-americano Richard Schickel estava preparando um dos livros mais importantes já escritos sobre o personagem: The Disney Version, uma análise profunda do homem e do fenômeno cultural e econômico criado. O livro, que estava bem longe de ser uma hagiografia que os herdeiros responsáveis pela corporação considerassem adequada naquele momento para honrar o pai criador, morto prematuramente (de câncer, aos 65), lhe rendeu uma proibição, por anos, de entrar nas funções privadas dos filmes da empresa (uma “distinção” que Schickel dizia ostentar com orgulho). Rendeu também ao homem, um empregado da empresa com quem passeou pelo estúdio e a quem animou para fazer seu livro, sua demissão. Entretanto, na introdução à terceira edição de seu livro, publicada nos anos 90, Schickel observou que seu “livro é muito menos um ataque contra Disney que seus defensores e detratores tanto viram nele, e é muito mais o ajuizado questionamento de seu mito e de suas conquistas que eu sempre propus que fosse”. “De fato, ainda sinto o mesmo que senti quando terminei de escrever: que o meu retrato de Walt Disney o lisonjeava por precisamente lhe garantir uma complexidade como personagem e uma motivação que ninguém tinha oferecido antes… A publicação, uns anos atrás, de outra biografia escabrosa de Disney, que o mostrava passeando sem rumo pelas passagens subterrâneas de seu estúdio e de seu parque temático, bêbado e preso em uma paranoia intensa (…), confirmou minha convicção no equilíbrio e na precisão do meu retrato”. Em uma passagem de seu livro, Schickel escreve coisas como: “Se tem um filho, não poderá escapar dos personagens de Disney, ainda que os odeie”; “Enquanto capitalismo, sua obra é de um gênio, como cultura, é majoritariamente o horror”. Certamente, a companhia não ia dar aval a esse tipo de reflexão e discussão sobre seu império. 

Entretanto, quase meio século se passou desde a morte de WD, e um pouco menos desde aquele livro, e ainda que a empresa – depois de atravessar uma enorme crise nos anos 80 em seu departamento de animação – hoje esteja novamente em seu auge de poder, expandindo em passos gigantes (são os proprietários de Os Muppets, da Marvel, da LucasFilm), ela se permite dar uma guinada mais ou menos arriscada, como em Walt nos Bastidores de Mary Poppins. Tanto apoio oficial ao filme suscitou, inevitavelmente, muita desconfiança. O próprio diretor, John Lee Hancock, disse em várias entrevistas que inicialmente temia que, uma vez que a produção entrasse sob a órbita da companhia, fosse obrigado a revisar os detalhes menos amáveis do personagem. Porém, ao final, disse que quase não houve interferência do estúdio. “Imaginei o momento em que me diriam: “Sentimos muito, mas preferimos mostrá-lo como um Deus’. A seu favor devo dizer que foram suficientemente inteligentes para se darem conta de que um Disney humano não era somente um personagem melhor, como era também mais fácil de se gostar”. 
 
P. L. Travers aparece no filme manifestando todas suas objeções à “banalização” a qual Disney e sua equipe querer submeter sua queridíssima criação, assim como seu desprezo pela cultura popular norte-americana, pela Costa Oeste dos EUA etc. E faz isso com tal graciosidade, que, para seu pesar, curiosamente se transforma na personagem mais querida e encantadora do relato. O roteiro, isto é certo, omite parte daquilo que veio depois da estreia de Mary Poppins, filme que foi um dos maiores êxitos comerciais dos anos 60 e ganhou cinco Oscars com cinco nomeações, tornando Travers mais rica e famosa do que nunca. Walt nos Bastidores de Mary Poppins chega a nos dizer que, depois disso, Travers retomou sua personagem. O que não nos diz é que nunca mais autorizou Disney a fazer outra adaptação de sua obra. A sequência de Mary Poppins é representativa quanto ao trecho mais ambíguo do filme: nos conta que Disney decidiu não convidar Travers à pré-estreia (prevenindo um possível escândalo) e que ela se fez ser convidada de todos os modos. Mostra Travers chorando durante a projeção, uma versão atestada por todas as testemunhas disponíveis, mas suscetível a interpretações diversas: sua biógrafa Lawson acredita que tem menos a ver com o conteúdo sentimental do filme do que com um efeito catártico que toda a experiência – e possivelmente também sua origem autobiográfica – tinha para ela naquele momento. Mas há quem diga que suas lágrimas se devem a ter odiado o filme, e ao fato de Disney ter, ao final, traído seu acordo ao, entre outras coisas, incluir sequências de desenhos animados no filme. Travers se aproximou de Walt ao final da projeção para despejar sua lista de reclamações (“os pinguins animados têm que sair”), às quais ele respondeu, sem rodeios: “Pamela, esse trem já passou”. Esse momento, sim, está representado no filme. 

A questão mais discutida tem a ver com a viagem final e inesperada que Disney fez a Londres para finalmente convencer Travers. No filme, Walt faz um discurso emotivo para ela, comparando as experiências de infância traumática de ambos ao próprio Mr. Banks (o duro e explorador Elias Disney e o banqueiro Travers Goff) para convencê-la de que a ficção é a maneira que temos “nós, como narradores” de curar nossas histórias, de recuperar com a imaginação “alguma ordem em meio ao caos”, que é a vida real. É uma encenação artificial da empatia que finalmente teria acontecido entre esses dois, criada inteiramente pelos roteiristas, e a convincente guinada emotiva interpretada por Hanks e Thompson. O certo é que não houve testemunhas desse encontro, e o mais provável é que, ao final de tudo, o que se impôs foi a dura e material realidade: Travers precisava de dinheiro.

Em última instância, os estúdios Disney assumiram outra questão menor, que o filme resolve com elegância: o pedido explícito que Disney não aparecesse fumando cigarros em nenhuma cena – um veto que circula como um vírus em Hollywood. Em Walt nos Bastidores de Mary Poppins, Disney – que morreu alguns poucos anos depois dos eventos narrados pelo filme – não é visto com o cigarro na boca, mas ouvimos sua tosse (sintoma cinematográfico que expressa, sem dúvidas, doença) e o vemos apagá-lo apressado, em um cinzeiro, antes da chegada de Travers.
 
A crítica recebeu o filme com desconfiança e eventualmente com respeito pela equilibrada aproximação de seus personagens, para além das questões mencionadas. Há os que se queixam de que não há menção alguma aos modos de fura-greve mafioso que certa vez impingiram a Disney, nem de nenhuma das características que Meryl Streep mencionou em seu discurso. A verdade é que a história do filme segue outro caminho. 
 
O americano imperfeito
 
Na sexta-feira 10 de janeiro, três dias depois do discurso de Streep, Abigail Disney, uma sobrinha-neta de Walt, escreveu sobre as acusações da atriz contra seu avô no Facebook. “Antissemita? Sim. Misógino? COM CERTEZA. Racista? Oras, fez um filme, Mogli – O Menino Lobo, sobre como cada um deveria ficar com os de sua própria classe no auge da briga pelo segregacionismo!” Ainda que também dissesse ter sentimentos ambíguos; “Mas, diabos, foi incrivelmente bom fazendo filmes e seu trabalho fez bilhões de pessoas felizes. Não se pode negar, aí está”. De alguma maneira, e um pouco mais discretamente, a própria Streep tinha feito uma ressalva em meio a seu ataque ao indicar que a arte pode redimir um homem “que abriga tantos preconceitos”. E que, para além de “todas as suas falhas, pode-se dizer que Disney trouxe alegria a milhões de pessoas”. Um pouco do equilíbrio e da complexidade de que Schickel tratava em seu livro. 
 
E falando em redenção, é essencial assistir ao curta-metragem que antecede Frozen, uma aventura congelada – último grande sucesso animado da Disney, livre adaptação de A rainha da neve, de Hans Christian Andersen. O curta se chama Hora de viajar! e é uma verdadeira obra-prima protagonizada por Mickey Mouse, que homenageia seu criador recriando sua voz com fragmentos de velhas gravações, interagindo com o octogenário rato – no encantador estilo volátil e flutuante das primeiras animações – com um redesenho retrô do personagem em cores e em 3D. Uma lembrança não tão sutil de que eles estiveram aí primeiro e que não continuam aqui. E que podem dizer milhares de elogios e milhares de insultos sobre aqueles que inventaram tudo isto, mas que, de tudo isto, saíram alguns dos melhores filmes da história. Este é o poder redentor da arte.


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