O sistema eletrônico hoje empregado para realização da votação e contagem de votos está previsto nos artigos 59 a 62 da Lei nº 9.504/1.997, além de sua regulamentação em nível infralegal, em normas expedidas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), tendo sido utilizado pela primeira vez, em âmbito nacional, nas eleições gerais de 1.998. Em duas oportunidades, após a informatização total do processo, tentou-se implantar a obrigatoriedade, por lei, da criação de mecanismos que permitissem a impressão do voto efetuado por meio de urnas eletrônicas: a primeira, com as alterações introduzidas na Lei nº 9.504/1.997 por uma lei de 2.002, que, contudo, foi revogada no ano seguinte, sendo substituída pelo registro digital do voto (Lei 10.740/2.003), após uma experiência em que detectados problemas diversos com as urnas que imprimiam votos; e a mais recente com a Lei nº 12.034/2.009, cujo artigo 5º criava, “a partir das eleições de 2014, inclusive, o voto impresso conferido pelo eleitor, garantido o total sigilo do voto” e observadas regras estabelecidas em seus parágrafos 1º a 5º.
Esse dispositivo, exatamente, é o objeto da ADI 4.543, proposta pelo Procurador-Geral da República, e estava com sua eficácia suspensa, desde outubro de 2.011, quando os Ministros do STF, à unanimidade, concederam medida cautelar para esse fim, nos termos do artigo 10 da Lei nº 9.868/1.999, que regulamenta o procedimento das ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade.
O cerne da questão, desde sempre, esteve em saber se a impressão do voto, após sua confirmação pelo eleitor na urna eletrônica, comprometeria ou não o direito ao sigilo e à inviolabilidade do voto, assegurado constitucionalmente. E a despeito das informações e manifestações da Presidência da República, das Casas do Congresso Nacional e da Advocacia-Geral da União favoravelmente à previsão legislativa, o Plenário do STF, na esteira do voto da Relatora, manteve o entendimento adotado quando da concessão da cautelar, declarando ao final a inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei nº 12.034/2.009.
A Min. Cármen Lúcia, cujo voto foi acompanhado pela unanimidade dos Ministros, teceu considerações sobre aspectos materiais e jurídicos acerca da impressão de votos registrados em urnas eletrônicas. Sob o ponto de vista material, a Ministra resgatou os resultados da tentativa havida, em 2002, de implantação do voto impresso, para consignar que a experiência demonstrou vários inconvenientes e que em nada agregou “em termos de segurança e transparência” ao processo eleitoral; e, valendo-se de sua experiência à frente do TSE, fez questão de esclarecer dúvidas existentes em torno do sistema eletrônico de votação, salientando que, “ao contrário do que muita gente poderia pensar, este processo adotado no Brasil não dispensa controle, nem auditoria, que acontece a cada eleição”, que os dados são guardados para permitir a recontagem, embora não em papel, e sim em sistemas “absolutamente inatacáveis” e “não questionados, por quem quer que seja”.
É do ponto de vista jurídico, contudo, que se extraem a maior consistência e definitividade dos argumentos trazidos pela Relatora para concluir pela inconstitucionalidade da norma que institui o voto impresso. Salientou, inicialmente, que o voto é secreto por determinação constitucional, o que se traduz em uma conquista “destinada a garantir a inviolabilidade do querer democrático do eleitor e a intangibilidade do seu direito por qualquer forma de pressão”. Frisou não ser possível a retroação em relação a essa conquista, em decorrência do princípio da vedação do retrocesso em matéria de direitos fundamentais, e que a “quebra desse direito fundamental do cidadão”, posto a partir de sua liberdade de escolha, afronta a Constituição (os acima citados artigos 14 e 60, parágrafo 4º, II). “A impressão do voto fere exatamente este direito”, afirmou a Relatora.
A Ministra prosseguiu em seu voto, consignando, de forma contundente, que “não é livre para votar quem pode ser chamado a prestar contas do seu voto” – e essa “espúria prestação de contas” supõe existir um “dever a que não pode o cidadão se sujeitar, que ele não deve a ninguém e nem se compadece, a não ser com sua própria consciência”. Definiu o voto como um “espaço de liberdade cidadã”, que não pode ser “trocado pela necessidade do eleitor”, “negociado pela vontade de quem quer que seja”, sob pena de todo o sistema estar viciado. Daí o segredo do voto, que não pode ficar “à mercê de comprovação do ato a ser demonstrado a terceiros, sob as mais diferentes causas e as mais escusas justificativas, nunca democráticas”.
A urna, nos dizeres da Relatora, é esse espaço de liberdade do cidadão, sendo a cabine, a seu turno, o espaço de garantia dessa liberdade, da “escolha livre e inquestionável” do eleitor. Se o voto é ato personalíssimo e inexpugnável, se não há porque nem para quem comprová-lo, e considerando que a impressão do voto em papel seria prova do ato, indagou então, “qual a necessidade dele e a coerência com os princípios constitucionais”? Em um sistema que já é dotado de mecanismos de controle, não haveria serventia qualquer, ao contrário. Isso porque, asseverou a Relatora, remetendo à inicial da ADI, de um lado, permitiria a identificação do eleitor, pela associação de sua assinatura digital ao número de identificação do voto (artigo 5º, parágrafo 2º, da Lei nº 12.034/2.009), e, de outro, ainda poderia expor todo o resultado da eleição a terceiros, na hipótese de haver falha no sistema de impressão e necessidade de sua correção, no momento. O voto impresso, pois, tornaria vulnerável um sistema que, hoje, é seguro.
Esse aspecto, em especial, já havia sido destacado pelo PGR (Procurador-Geral da República), em sua manifestação em Plenário, em que reiterou os termos da inicial da ADI 4.543 e invocou os ensinamentos de José Joaquim Gomes Canotilho, eminente constitucionalista português, para salientar que a impressão do voto, “por se tratar de espécie de voto aberto, voto a descoberto”, produziria um “efeito perverso em detrimento da liberdade de escolha do eleitor”, consistente na “possibilidade de corrupção e intimidação”, o que comprometeria, ademais, “a lisura do processo eleitoral”. E concluiu o PGR que se deve proibir não apenas o monitoramento do momento em que o cidadão vota, como ainda qualquer “possibilidade de rastreamento a posteriori da manifestação de vontade do eleitor” – de onde a incompatibilidade do expediente da impressão com o sigilo e a inviolabilidade do voto.
Houve, ainda, um ou outro aspecto impugnado nos parágrafos do artigo 5º da lei nº 12.034/2.009, além de observações feitas pela Relatora, tanto sobre os óbices práticos à reintrodução do voto impresso no sistema, quanto sobre o reconhecimento mundial do sistema de votação eletrônica brasileiro, “não contestado, senão de maneira eventual”, no que se refere à sua capacidade de garantir a moralidade e a eficiência das votações – e diante da alegação de que sistema dessa natureza não é adotado em outros Estados, como o norte-americano, por exemplo, ponderou a Ministra que “cada povo escolhe o seu modelo de democracia, o seu modelo de eleições” e que a Constituição brasileira contém princípios que “propiciaram a criação de um modelo legal, que foi materializado pela Justiça Eleitoral”, para dar-lhes cumprimento. Mas a verdade é que essas foram considerações adicionais, feitas talvez com a intenção de não deixar quaisquer pontos levantados em aberto – ou, quiçá, em defesa da confiabilidade do sistema eletrônico como hoje praticado. O fundamento essencial, no entanto, porque suficiente para equacionar o problema levado ao Plenário do STF, reside, efetivamente, na afronta que o voto impresso representa às garantias constitucionais de sigilo e inviolabilidade da livre manifestação do eleitor.
Com manifestações de apreço e em reforço ao quanto exposto pela Relatora, os Ministros do STF julgaram procedente a ADI 4.543, declarando a inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei nº 12.034/2.009, que instituía o voto impresso, a partir das eleições de 2.014.
É certo que, ao longo de sua existência, não faltaram críticas ou questionamentos – técnicos e filosóficos – ao sistema eletrônico de votação. Observadores internacionais, expertos em tecnologia da informação, cientistas políticos, juristas, todos, em algum momento, com maior ou menor intensidade, já se dedicaram a procurar evidenciar um aspecto negativo do voto “depositado” em urnas eletrônicas. Os argumentos nesse sentido, contudo, mais do que com barreiras técnicas ou jurídicas, defrontam-se com a realidade deste início de século, que parece apontar para a inevitabilidade do modo de vida digital. A familiaridade com o ambiente e com a forma de interação por meios eletrônicos, demonstrada pelas novas gerações nos aspectos mais prosaicos do seu cotidiano, parece pavimentar a irreversibilidade do caminho que as urnas eletrônicas inauguraram, em âmbito político – propiciando, ademais, a discussão sobre projetos ainda mais ambiciosos, como o da transformação do mundo virtual no ambiente por excelência de participação política direta dos cidadãos na vida da poliscontemporânea.
E o órgão responsável pela guarda da Constituição, com a decisão unânime alcançada na Adin 4.543, parece, ao que tudo indica, concordar com essa irreversibilidade do processo. O voto direto, periódico e universal, para ser secreto – como o quer o Estado Democrático de Direito brasileiro – não pode ser impresso. Foi, em suma, o que decidiu o STF.