Estava toda a turma concentrada na aula de Fundamentos da Comunicação Humana quando adentrou a sala, apressado, um rapaz bonito com leves mas aparentes olheiras no rosto branco e com uma cabeleira castanha cacheada e molhada de um banho recente.
Seu carisma sem esforço atraiu a atenção de todos e todas, inclusive a do professor, que não perdeu tempo em fazer piada do que ele chamou de "frequentes atrasos" do aluno.
Assim se deu meu primeiro encontro com Wagner Moura, que, naquele ano de 1995, já estava envolvido com o teatro – motivo de ele muitas vezes se atrasar para as aulas na Faculdade de Comunicação (a Facom) da Universidade Federal da Bahia, onde cursamos e nos formamos em Jornalismo.
A partir dali, nós conviveríamos nas aulas de outras disciplinas, mas sobretudo na cantina da faculdade (a Cantina do Vovô!), onde as diferentes turmas se encontravam para estender os debates das aulas; trocar impressões sobre os autores estudados; emitir opiniões sobre produtos e personalidades da indústria cultural; debochar dos alunos e professores mais marcantes ou caricatos; cantar e tocar violão; e, claro, beber, que também sem a cerveja ninguém segurava aquele rojão (e a Facom era a única das unidades da UFBA a vender bebida alcoólica, o que atraía para lá alunos mais progressistas de cursos conservadores como Direito e Medicina, que costumavam nos ver como "exóticos").
Wagner Moura estudava jornalismo, mas já era um homem comprometido com as artes cênicas. Alguns anos depois, quando protagonizou o espetáculo Abismo de Rosas, escrito por Claudio Simões a partir de canções de Lupicínio Rodrigues e dirigido por Fernando Guerreiro, Wagner mostrou ao público do teatro baiano que era um ator de raro talento e que certamente ganharia o Brasil por isso. Não demorou muito para que acontecesse.
Por conta de sua arrebatadora atuação em A Casa de Eros (montagem especial de José Possi Neto para comemorar o aniversário da Escola de Teatro da UFBA), Moura foi convidado pelo roteirista e diretor pernambucano João Falcão a estrelar – ao lado de Lázaros Ramos, Vladimir Brichta e Gustavo Falcão – o espetáculo A Máquina, baseado no romance de Adriana Falcão. Graças ao estrondoso sucesso de público e de crítica dessa empreitada, o elenco foi parar na Globo, por meio do seriado Sexo Frágil, escrito e dirigida pelo mesmo João Falcão.
Na sequência, Wagner Moura protagonizou duas novelas – A Lua Me Disse e Paraíso Tropical – e uma minissérie (JK). Mas podemos dizer que seu talento se tornou conhecido mesmo em todo Brasil (e, a partir daí, em outras partes do mundo) com o fenômeno Tropa de Elite, em que fez de seu personagem (o Capitão Nascimento) o mais popular, controverso e memorável herói da história do cinema brasileiro até o momento. Não por acaso, o diretor da franquia, José Padilha, convidou-o a protagonizar sua série para a Netflix: em Narcos – que estreou recentemente – Wagner Moura aprendeu a falar fluentemente castelhano e engordou vinte quilos para encarnar o traficante colombiano Pablo Escobar.
Nós estivemos juntos na Colômbia durante as gravações. Na ocasião, Wagner me bombardeou de perguntas sobre a crise política no Brasil, interessado que é no tema.
Na entrevista que segue, realizada entre xícaras de café, bolo de chocolate, muitas risadas e as intervenções de seus três filhinhos (Bem, Salvador e José), ele fez sua própria avaliação da grave situação política e econômica que o Brasil enfrenta; revelou detalhes dos bastidores de Narcos; contou o motivo de não ter perfil em nenhuma rede social; fez considerações sobre as recentes expressões do ódio no país; explicou por que não fez novelas nesses últimos anos e disse em que ponto está seu filme sobre o guerrilheiro comunista Carlos Marighella e qual será seu próximo desafio artístico.
É sempre bom estar com Wagner Moura e com Sandra Delgado (fotógrafa, sua esposa e também minha amiga desde os tempos da Facom). Espero que nossa conversa lhes enriqueça tanto quanto me enriqueceu.
Jean: Qual o sentido de um filme como “Marighella”, nesse contexto de polarização no Brasil, em que "comunista" volta a ser xingamento, e a gente vê surgir uma espécie de patrulha, de um neomacartismo, na tentativa de desconstrução desses pensamentos de esquerda?
Wagner: Talvez por isso mesmo. Escrever um roteiro é uma coisa muito difícil. Talvez seja o processo mais difícil do filme, porque você precisa encontrar um recorte. Eu estava muito angustiado com isto, em ser honesto com tudo o que aconteceu, com a história, e ao mesmo tempo fazer um filme de ficção. Mas pude ver uma palestra da Heloísa com a Lilian Schwarz, em que ela dizia que a escravidão e as revoltas são duas linhas que correm em paralelo no Brasil, e isso me ratificou a certeza de que eu preciso falar sobre esse tema.
Eu voltei agora da Alemanha depois de lançar o Narcos em Paris, em Londres e na Inglaterra, e eu dizia especialmente aos jornalistas alemães que eu vou fazer um filme sobre um guerrilheiro, sobre a ditadura no Brasil. Eu disse que na Alemanha, embora eles próprios não achem isso, há uma relação psicologicamente muito mais saudável com o passado deles, com o holocausto basicamente (claro que houve uma proporção imensamente maior que a ditadura no Brasil). Nossa tendência na América Latina, especialmente no Brasil, é o esquecimento, é você dizer “deixa pra lá”. A lei da anistia é ruim, eu acho que ela não faz bem psicologicamente para a nação porque não faz justiça. E mais que isso, ela não só não faz justiça, como ela é alienante, especialmente para a minha geração, ela é muito alienante.
A nossa geração não cresceu sabendo direito o que aconteceu. A história que nos foi contada fala de comunismo.... E eu, como artista, não consigo ver essa história. Eu estou fazendo uma história de Pablo Escobar, nenhuma história deve ser contada de maneira maniqueísta. Nenhum personagem pra mim é bom, nenhum personagem pra mim é mau, eu tento fazer um filme pra gente adulta, com personagens complexos, entendendo aí as relações psicológicas, sociais e do momento em que as pessoas pensam de determinada maneira.
Jean: Em que ponto está o filme?
Wagner: O roteiro está sendo encaminhado, mas estamos com muita dificuldade de captar recursos para um filme sobre um comunista no Brasil. E isso me dá muito mais vontade de seguir.
O que eu queria mesmo é justamente entender uma coisa que pra mim nunca foi bem contada:, entender o que fazia com que as pessoas que estão tão próximas da gente, em termos de geração, tivessem uma atitude perante a política, a história, a vida, o país, tão diferente da nossa. Nós que nascemos e vivemos na ditadura...
O mundo caminhou para um lugar individualista, aquilo que vale é a sua carreira, a sua família. Já o pensamento coletivo e as utopias... (veja que o projeto na União Soviética mostou-se inviável, e em Cuba, com a ditadura de esquerda, tivemos que passar por um entendimento, um revisionismo do que é ser de esquerda). Hoje em dia, se pensamos que somos de esquerda, teremos vários questionamentos, várias dúvidas serão levantadas até você dizer “eu sou uma pessoa de esquerda porque eu acredito na justiça social, eu acredito na liberdade individual, eu acredito que todo mundo é igual perante a lei”. Se isso é ser de esquerda, foda-se, eu sou de esquerda.
Jean: Também gostaria de entender como as pessoas fazem uma opção política de resistência que as leva, por exemplo, a pegar em armas. Como se dá isso?
Wagner: Ah, isso é tortura, a pessoa não tem uma vida. A vida dela é aquela, você perde seus amigos, você não tem contato com os seus pais, alguns tinham filhos e deixavam de ver seus filhos e podiam ser são torturados e mortos.
Jean: Mas como são feitas essas escolhas? Como elas se impõem pelo coletivo e não pelo indivíduo? E em que medida essa escolha está necessariamente certa? Nessa onda de polarização, em que o Brasil está vivendo essa divisão política, que começou em 2010 e recrudesceu nas eleições de 2014, permanece agora uma espécie de “terceiro turno”, com muito xingamento e pouco diálogo. E os episódios são utilizados emblematicamente, como o helicóptero com meia tonelada de pasta de cocaína, um avião que pertence a uma família de políticos.
E eu te pergunto, você está fazendo agora um seriado sobre tráfico de drogas e sobre a figura do Pablo Escobar. Você já disse que não julga o personagem, mas eu queria que você me dissesse: fazer esse personagem te ajudou a entender, te colocou no outro lado, inclusive? Porque você fez um personagem que se tornou muito popular, o Capitão Nascimento, que está ao lado das forças de repressão. O cara que, sobretudo no primeiro filme - no segundo de maneira mais crítica -, está convicto de que uma guerra às drogas tem que ser estabelecida. Fale um pouco dessa mudança, a partir desses dois personagens.
Wagner: É engraçado porque o Escobar, assim como o Nascimento, também era um factóide, uma caricatura da direita, errada. E ele se dizia o Robin Hood colombiano. O que eu acho que acontece hoje no Brasil é muito pobre das duas partes, tanto da direita quanto da esquerda. É pobre demais a conversa, sabe?! “Petralha”, “coxinha”...
Eu dei uma declaração que gerou polêmica, que foi uma declaração mal escrita pelo jornalista Merten. Segundo ele eu teria dito que não dá mais pra viver no Brasil. Eu nunca disse isso! Se eu quisesse ir embora do Brasil, já teria ido há muito tempo. Eu moro no Brasil, minha família mora no Brasil, meus filhos moram aqui, moram na Bahia. Mas eu disse que estava feliz de não estar aqui durante a eleição e tudo que está acontecendo agora. E essas declarações que eu dei quando lancei o “Praia do Futuro” repercutiram tanto de um lado quando de outro. Eu tomei porrada dos dois lados, tanto do Rodrigo Constantino quanto do Jorge Furtado. E as duas porradas, as duas punições, me pareceram burras. As duas me pareceram pobres, porque na época eu denunciava... a direita já começava a ficar burra, o governo já apresentava fragilidades, mas foi antes do chamado “Petrolão”, antes dessa crise toda. E eu dizia que o Brasil caminhava pra um conservadorismo que hoje em dia é muito mais forte do que estava em 2014. Eu falava do recrudescimento da direita no Brasil, mas falava também desse maniqueísmo burro que se instalou no Brasil.
Como eu disse, se algumas posições definem uma pessoa de esquerda, então eu sou de esquerda, mas não sou ideologicamente imbecil, eu não sou um idiota. Só uma pessoa idiota, mesmo - talvez agora eu deva estar pegando pesado -, só um imbecil ideologicamente cego não está vendo que existe um evidente problema no governo, que existe uma crise violenta de corrupção, de valores. Eu sempre me lembro daquele livro Corações Sujos, aquele livro dos japoneses que se recusavam a acreditar que o Japão havia perdido a guerra. Quando alguém me diz “o mensalão é uma invenção”, eu não sei o que dizer. E ao mesmo tempo não posso compactuar com esse golpismo, esse movimento de ultra-direita, de elite, de gente rica. Outro dia ouvi uma frase ótima: “felizes das pessoas que acham que a corrupção mora num partido”, ou seja, há quem acredite que assim que se tirar esse partido do poder a corrupção vai acabar. Que pessoas felizes, que coisa boa! Mas a pessoa que reflete, a pessoa que pensa, a pessoa que faz esforço pra pensar, ela não é feliz.
Jean: Wagner, você acha que a popularidade do Capitão Nascimento, em parte, é a rejeição pela Praia do Futuro? A rejeição homofóbica?
Wagner: Eu acho que sim. Quando lançamos o filme em Berlim, eu não queria que a homossexualidade fosse um tema, porque era uma posição muito particular minha, eu acho que quando existe um casal, um homem e uma mulher, isso não é um tema; então não deveria ser um tema quando são dois caras. Talvez tenha sido uma postura errada, talvez a gente devesse ter falado mais, porque isso ainda é uma questão. Talvez eu estivesse prevendo um momento, ou querendo, e infelizmente não é assim. E muita agente foi ver o “Praia do Futuro” querendo ver o “Tropa de Elite” dos bombeiros, e em cinco minutos de filme o bombeiro estava "dando" no carro.
Jean: O João Ubaldo Ribeiro dizia que as pessoas sempre perguntavam a ele como era possível um homem hétero, com a vida hétero, ter escrito cenas tão verossímeis, tão verdadeiras de homossexualidade em “A casa dos Budas Ditosos”.O Heath Ledger também, muita gente perguntava pra ele sobre aquela cena de “Brokeback Mountain” com o Jake Gyllenhaal. Curioso as pessoas perguntarem sobre isso, né? Já lhe fizeram esse tipo de pergunta? Como é possível você ter feito aquela cena não sendo um ator gay, sendo um ator hétero?
Wagner: Eu entendo de amor, de tesão, eu sei o que é sentir tesão por alguém, eu sei o que é ter vontade de transar com uma pessoa. É da natureza do ator se colocar em situações nas quais você habitualmente não vive na sua vida normal.
Jean: Mas também é da natureza do grande público não compreender essa natureza do ator. Tanto é que, muita gente te confunde com o Capitão Nascimento. Muita gente rejeitou o filme porque esperava ver o Capitão Nascimento. Muita gente faz patrulha na vida privada dos atores por não compreender que o ator está ali pra se jogar no personagem. Fale um pouco de como resistir ao canto da sereia da indústria cultural em contraponto à necessidade material de se ter uma vida confortável. Da escolha de não se fazer determinados papéis que possam render prejuízo no mercado publicitário, por exemplo... Como conciliar isso?
Wagner: Eu nunca fiz uma opção na vida pensando no mercado. Nem pensava no quanto eu ganharia, quanto iam me pagar. Quando eu quero fazer uma coisa, eu vou e eu faço. Claro que eu tenho três filhos e eu preciso sustentá-los. E graças a Deus eu estou num momento da minha carreira em que sou bem pago. Mas não escolho uma coisa pensando como é que vai ficar a minha imagem, ou o que é que as pessoas vão pensar.
Mas busco fazer coisas que me acrescentem algo. Eu não gosto do termo "carreira", eu não sei o que é carreira, eu sei o que é a minha vida, isso é a minha vida. No campo internacional é o mesmo, as escolhas que eu farei vão fazer sentido pra mim, me farão entender alguma coisa, vão acrescentar algo na minha vida.
Jean: E você queria muito trabalhar com Karim, eu lembro disso...
Wagner: Eu sempre quis trabalhar com Karim, com o que quer que fosse. E eu tenho outro projeto com Karim, que é sobre a intolerância religiosa. Meu próximo projeto com ele é uma tentativa de entender, e eu quero muito fazer isso, o fenômeno dessas igrejas pentecostais.
Eu também não aceito a redução, a redução me parece classe média. Eu resisti muito, até conversando com você, com relação à Marina, há muito tempo. Eu realmente entreguei os pontos quando a vi capitulando com relação ao projeto de governo dela, com relação à homossexualidade. Mas não por ela ser evangélica, porque isso me parece um preconceito às avessas. Parece coisa de gente que faz troça de música brega, elitismo, aquela coisa de religião de empregada. Isso eu não acho legal, porque nas manifestações contra Marcos Feliciano das quais nós dois participamos, eu encontrei alguns pastores muito legais, gente legal, com quem eu não tive tempo de conviver. E acho também que as religiões cumprem um papel social.
Agora, é claro que a gente vê na televisão, a gente vê de um modo geral a força que esses caras têm no Congresso. Eles se tornaram uma força política determinante, eles têm muita força, mas a agenda deles é muito atrasada... Isso sim, a isso eu me oponho e vou me opor sempre. Mas eu quero entender as pessoas. E voltando a Pablo, o que mais perguntam - engraçado, muito parecido com o Nascimento - é: "como você humaniza um cara?" E eu digo “mas ele é uma pessoa, ele foi um ser humano, ele nasceu, não brotou, não é uma medusa”.
Jean: Arnaldo Antunes fala: “Saiba, tudo mundo já foi criança, Maomé já teve infância”. E é isso, humanizar...
Wagner: Porque não quer dizer que eu não tenho juízo crítico sobre o Nascimento, mesmo sendo um personagem de ficção, e sobre o Pablo Escobar, evidentemente.
Jean: Narcos terá uma segunda temporada?
Wagner: A Netflix faz um jogo de cena, eles não dizem oficialmente que haverá. Eu imagino que eles queiram anunciar isso, e esse anúncio gera expectativa. Acho muito difícil não haver, mas eu não sou autorizado a dizer que haverá.
Jean: Mas você está disposto a continuar?
Wagner: Estou. Porque foi a coisa mais difícil que eu já fiz na vida, e eu quero fazer.
Li um texto hoje, de Adriana Calcanhotto, sobre o tempo, sobre a velocidade das informações. A gente fala em voltar a viver em Salvador, por exemplo. Eu quero cada vez mais atrasar o meu passo, andar mais devagarzinho, embora eu esteja ficando mais velho, numa época em que se está querendo correr pra tudo. Eu não, quero aguentar tudo isso e andar mais devagar. Por isso eu não tenho mídia nenhuma, não tenho Facebook, não tenho Instagram, não tenho Twitter, eu não tenho nada disso, se pudesse eu não teria celular. Eu quero andar com mais espaço, e Narcos foi uma coisa que eu fiz - e quero fazer tudo assim - e eu tive tempo pra fazer, fiquei muito orgulhoso do que eu fiz.
Eu aprendi a falar uma língua pra fazer um personagem. Eu fui para a Colômbia, eu fiquei lá, estudei, engordei 20 quilos. Um ator brasileiro, magro, que não fala espanhol, vai fazer Pablo Escobar... É como chamar um ator da Colômbia e dizer “você vai ser o Pelé”, e o cara é branco. E foi pra mim um caso muito desafiador, contracenando com atores colombianos, então eu tenho muito orgulho disso, dessa série, e quero fazer outra temporada, porque o Pablo Escobar vai ter que morrer, a gente não terminou isso nessa primeira temporada.
Jean: Durante o estudo para o personagem, conhecendo a realidade da Colômbia, que é bastante complexa, a política colombiana, o papel do narcotráfico inclusive na política mundial, você reavaliou sua posição em relação à legalização das drogas?
Wagner: Eu ratifiquei. É isso mesmo. As drogas precisam ser legalizadas. Eu estava falando com uma americana, essa semana, e ela falou: “cara, eu não sei se eu quero... todas as drogas?” E eu falei "todas as drogas, porque cada droga tem a sua dinâmica, não é tipo 'legalizou, aí tem no supermercado cocaína, heroína'... não é assim não é uma liberação, é uma legalização".
Daí ela disse “eu não sei se eu quero estar na rua e encontrar alguém que vomite na minha frente”. E eu disse "bom, antes a pessoa vomitar na sua frente na Califórnia do que no México 50 pessoas serem assassinadas de uma vez só por causa disso. Eu acho que uma pessoa vomitar na sua frente é um preço que você tem que pagar".
E é ruim porque a política antidrogas é uma política subvencionada pelos Estados Unidos e a relação que os americanos têm com as drogas dentro do próprio país é de absoluta tolerância. As drogas são quase legais em vários estados. Na Califórnia você pode comprar maconha tranquilamente se você tiver uma receita médica, que é oferecida nas ruas de Vennes. No entanto, eles apoiam uma política repressora nos países produtores e nos países da América Latina em geral, em que as pessoas te revistam, entra cachorro dentro do seu carro. Vai ver se entra cachorro no carro em Nova York.
Jean: E eles não levam em conta os insumos, os refinos... o da cocaína, vem todo dos Estados Unidos. A coca pode ser plantada aqui na América do Sul, mas os insumos químicos vêm todos dos Estados Unidos.
Wagner: E as armas, que estão nesses grupos armados, inclusive, também vêm de lá. Então não há como você não se opor à política de repressão por um fato muito evidente: ela se mostrou ineficaz nos últimos 40 anos, ela é ineficaz e ela tem servido muito pra matar gente pobre em países pobres, em país de terceiro mundo.
Jean: Wagner, eu te conheço de longas datas, e sei que o seu compromisso é de fato com a arte, com o que te faz feliz, com o que acrescenta ao mundo. Sempre foi o seu critério. Ainda assim, você aconteceu na indústria cultural: você foi parar em Hollywood. O talento ainda faz diferença, não faz? Numa indústria tão complexa, em que as pessoas que fazem essa indústria são de origens tão diversa, em que são muitos os critérios para que as pessoas a alcancem, o talento ainda faz uma diferença, não faz?
Wagner: Eu acho que faz, Jean, mas eu acredito também, e mais ainda, em dedicação e entrega. Em você se entregar mesmo ao que está fazendo.
Jean: É a distinção que eu faço entre talento e vocação, porque muitas vezes a pessoa tem talento mas não tem vocação, no sentido da vontade de burilar, de levar adiante. E tem gente que tem vocação e descobre o talento nessa vocação.
Wagner: Sim, embora minha profissão seja tão louca e eu não tenha vocação pra várias coisas que são atributos dela.
Jean: Como o quê, por exemplo?
Wagner: Lançar um filme, explicar o filme para as pessoas, dar uma pinta, tirar foto, aparecer na revista. Sem nenhuma falsa modéstia, eu não tenho vocação pra isso. Os americanos têm muita coisa de network. Você é convidado pra uma festa, mas não é pra você se divertir, é pra você conhecer alguém.
E lá eles me dizem: aqui a gente faz um filme pra pegar outro. Ora, eu vou fazer um filme se eu quiser fazer um filme, se eu não quiser eu não vou fazer. E é uma dinâmica que eu tenho estabelecido com os meus agentes, que é difícil, que eles não conseguem entender, parece petulante que um ator brasileiro se recuse a fazer um filme com um ator “x”. Agora, quando eu estou entregue ao fundamento da profissão de ator, eu faço com muita entrega, inclusive sacrificando o tempo com a minha família.
Jean: Exatamente por defender isso, o espaço da privacidade, por não dar estímulo pra certas coisas, pra certa exposição, você teve um tempo aí de entrevero com a mídia de celebridades. Ela lhe deu trégua?
Wagner: Ela não quer saber de mim mais, o que eu acho muito bom. Eu deixei de interessar a eles num sentido... eu tenho gerado polêmica pelas escolhas profissionais que eu faço, algumas, o própria “Praia”, o show com a Legião Urbana, o Tropa de Elite... Isso gera polêmica, e sei que eles gostam, porque eu gosto também. E ainda no posicionamento político, que nesse Brasil de “Fla x Flu” rapidamente se vira uma escória social pra um determinado grupo.
Jean: Mas não é porque você está usando a roupa “x”, nem está jantando no restaurante “y”.
Wagner: Exatamente! Isso eles não terão nunca.
Jean: Você é muito musical, não só porque gosta de música, e faz intertextualidade com a música... Você tem a banda, "Sua Mãe". Vai se dedicar à banda mais do que tem se dedicado?
Wagner: Essa banda é uma brincadeira, uma coisa que me faz bem, eu gosto dela, eu gosto da música que a gente fez, que a gente faz. Em 2010, quando completamos 18 anos de banda - agora nós temos 23 - lançamos esse disco, um coletivo que foi The very best of the greateast hits, que era o nome brega, a gente está sempre compondo. A gente se encontra e compõe. E agora é tenso, porque tem dois morando na Bahia, um morando no Rio, e fica mais difícil de a gente se encontrar. Quando todo mundo morava em Salvador, eu ia pra lá e a gente ia tocar. É difícil operacionalizar, mas eu adoro música.
Jean: E faria um novo show com a Legião? Faria mesmo, apesar de toda...
Wagner: Total! Claro, Jean, você acha que eu fui fazer um show com a Legião esperando que a crítica dissesse: “Oh, Wagner Moura, que cantor do caralho”? Não, eu fiz porque, como eu te disse antes, fez sentido na minha vida. Porque agora eu posso dizer que eu fiz isso, foi uma das coisas mais extraordinárias que eu já fiz na minha vida. Duas coisas que eu fiz que eu acho incrível: Hamlet e aquilo. E Dado Villa Lobos é meu amigo.
Jean: Eu confesso que queria estar lá no seu lugar, cantando no lugar do meu ídolo. Aquilo foi surreal, pra mim, pra nossa geração. Você indicou uma música de Roberto Carlos para a trilha sonora de Narcos, e qual foi a música especificamente, você lembra?
Wagner: Detalhes. Era alguma cena em que eu estava dançando, e eu pedi Roberto. O Roberto é muito conhecido na América Latina, gravou em espanhol, muito querido na Colômbia. Eu fiquei muito triste, mas eu soube que ele não quis o nome dele envolvido com uma série que fala de um traficante. Eu sou muito fã de Roberto, muito fã dele, do artista que ele é, mas ele tem constantemente se posicionado de público de uma forma que eu lamento. E ainda mais ele sabendo que eu sou um artista brasileiro, que o Padilha é um artista brasileiro, me pareceu boba a recusa. Eu fiquei chateado, o que nunca vai mudar a minha relação de fã absoluto da música dele, mas achei que ele foi bobo.
Jean: Não levou em conta nem a sua sensibilidade ali, de perceber que tinha tudo a ver. Mas o Pablo era fã dele. E depois de Hamlet, tem algum personagem no teatro que queira fazer? Você é um animal de teatro...
Wagner: Eu quero dançar. Hamlet deu uma ressaca grande... realmente foi o que mais impactou na minha vida. É difícil pensar agora em outra coisa, eu não me interesso por outra coisa, e as palavras que estão ali, em Shakespeare... Claro que existem outros autores maravilhosos. E eu sempre gostei de um certo tipo de teatro muito físico, eu gosto de usar o palco pra ser expressivo, de uma forma que cinema não nos deixa ser.
Eu nunca gostei de teatro que tem uma lareira... embora eu ache Tchekhov gênio, Ibsen... e tem a nova dramaturgia americana. Eu acho que o teatro se presta a uma outra linguagem, e Shakespeare é puro, ele é o anti teatro tipológico; o que Brecht descobriu na revolução, e trouxe para o teatro no século vinte, Shakespeare já havia descoberto em 1600. É lindo isso, eu adoro isso, já estava lá, ele descobriu aquilo tudo. Você fala com a plateia, não tem cenário, o cara fala “estamos numa floresta”, não precisa ter um cenário. E essa expressividade física é uma coisa que eu queria muito fazer.
Jean: Engraçado que Lars von Trier levou isso para Dogville, para a experiência dele, que é o cinema se valendo dessa possibilidade que o teatro dá, da imaginação. Então por isso você quer dançar agora?
Wagner: Sim, agora eu quero dançar, e expressar mais, claro que com algum texto. Pina Bausch e Caetano são os dois artistas que eu mais admiro na minha vida. São os dois artistas que mais me dizem, que me comunicam...
Jean: Você tem visto alguma coisa? Tem dado tempo de ir ao teatro ver as coisas? Nem fora?
Wagner: Não.
Jean: Lá na Colômbia você não chegou a ver?
Wagner: Lá na Colômbia a gente chegou a ver uma peça argentina, de um grupo argentino muito bom, chamado Timbre 4. Eu já tinha visto uma peça dele em Buenos Aires, muito boa, chamada A Maldição da Família Coleman, e ele estava em Bogotá com uma peça sobre a relação de uma babá de família, dessas babás-mães, que educam o menino, e que o hiperprotegem, e de repente eles se reencontram, a babá já velha e ele já tinha formado uma família. É um embate sobre a vida, sobre essas questões de “a intimidade e a não intimidade”, a relação que ela projetou ali e o que ele sente, no que ele se transformou; ela ainda o via como aquele menino, mesmo porque não é filho dela. É muito, mas muito interessante.
Jean: Engraçado, eu li um texto recentemente, de uma relação entre babá e filho, sobre um sistema de castas, na Índia, e ele é um cara que sempre conviveu com ela em casa, os pais liberais. Então a tinham como uma pessoa da família, mas ela foi a criada, fazia comida. Quando ele cresce, vai para a escola e adquire todos os valores dos sistemas de castas de anos, então ele começa a rejeitá-la, a dizer que não quer que ela apareça em público ao lado dele. Daí a mãe fala: "você sempre comeu da comida dela, você sempre gostou dela". Pra mostrar que essas coisas do ódio, da rejeição, são construídas, são partes de um processo de socialização.
Wagner: E sobre a socialização, quando esses caras aí falam que nós somos hipócritas, porque passamos de uma classe social a outra... tanto essa esquerda burra quanto essa direita radical, é como se sua classe social determinasse o seu olhar. Você só tem o direito de olhar de determinada maneira se você pertencer a determinada classe social. Ou seja, quando eu estava na Bahia, sem dinheiro pra comprar uma cerveja, aí eu podia pensar “assim, assado”, mas como eu prosperei na minha vida... é até difícil discutir isso.
Jean: Há liberais que eu respeito pra caramba, mas o que os liberais pregam é um mundo que não existe, porque ninguém no mundo parte das mesmas condições. Entendeu?! Ninguém parte das mesmas posições, isso é fato. As pessoas partem de condições distintas, e determinada posição que você ocupa na sociedade lhe trás vantagens evidentes em relação aos outros.
Então você partir da ideia de que os pobres são pobres por incompetência, defender a meritocracia, a ideia de que você é bem sucedido por pura competência, é você desconsiderar a história, o papel da história e de como essas pessoas são posicionadas nessas relações assimétricas de poder. Nesse sentido eu sou de esquerda, não da esquerda burra, tradicionalmente, antes mesmo do marxismo, a esquerda anterior ao marxismo.
A posição de direita e esquerda não começa com o marxismo, o marxismo se identifica com a esquerda, mas eu falo da esquerda anterior. Ser de esquerda é entender que o mundo não está dado, que as coisas não são como são por obra da natureza ou por obra divina; as relações são o fruto de uma disparidade de condições. Não podemos achar que as pessoas são pobres porque elas são incompetentes, que o menino não está na escola, e está vendendo nas ruas, porque não teve competência para estar na escola; que uma pessoa negra é desprestigiada no mercado de trabalho porque ela é incompetente, e não por causa do preconceito racial. Quer dizer, os liberais não levam em conta essas posições de sujeito. Ser de esquerda é você entender, sim, que existe essa disparidade, essa desigualdade, essa desvantagem, e a gente quer minimizá-la.
Wagner: Exatamente, é minimizar isso e possibilitar ascensão social. Eu não quero que quem é rico vire pobre, eu quero é que o pobre se levante.
Jean: E que a gente compreenda que há desvantagens. A própria rede de relações que você estabelece já lhe dá uma série de vantagens em relação aos outros. A pessoa é vítima de uma desigualdade material mesmo, social, ela está excluída na pobreza, ela foi impedida de entrar no sistema escolar, portanto de ter a formação que lhe permitiria chegar ao mercado de trabalho de outra maneira. E, além disso, ela tem uma desvantagem existencial, que está ligada à existência dela, que são os negros, os gays, as pessoas com deficiência... Defender essas pessoas, para mim, é ser de esquerda.
Mas olha, por fim, boa parte do público brasileiro não tem acesso a sua arte e sente falta de você fazer um produto tão popular, que é a novela. Existe algum convite, você pensa em voltar a fazer? Sei que você não vê muito, não tem muito tempo de ver...
Wagner: Eu não costumo, eu não vejo mesmo. Eu lembro que “Avenida Brasil” foi uma novela que eu achei incrível, que eu adorei, mas eu não tenho visto, e quando eu vejo, eu não gosto. Mas eu acho que a minha decisão de não fazer novela tem a ver com a minha excitação com os projetos de filmes, cinema, e coisas com o momento do cinema brasileiro - que hoje nem está tão bom, mas foi durante pouco tempo atrás, ainda bem!-, e a novela é um comprometimento de tempo muito grande, toma muito tempo do ator.
Eu agora estou envolvido com televisão, com a Netflix, e apesar de ser uma série, também tem o tempo de uma novela, que é um tempo muito gigante, e sinceramente, também não é essa estética artística que eu estou buscando pra eu me expressar.
Jean: Tem uma coisa de opção estética, também né?
Wagner: É, quando eu vejo Avenida Brasil, eu falo: “Ah isso eu queria ter feito!” Agora o que está acontecendo na televisão, especificamente na TV Globo, é uma valorização das séries, da dramaturgia de série que eu acho muito boa, que você vê hoje em dia. Tem muito mais séries sendo produzidas pela TV Globo, com padrão de qualidade que está cada vez mais vai se elevando, com a chegada das TV’s a cabo.
Jean: E a própria tecnologia mesmo, das câmeras...
Wagner: Mas mais que isso, mais que além das câmeras, eu acho que há uma tecnologia humana. O investimento em dramaturgia, em cursos e palestras... Mas a gente tem que pensar que é recente o fato de a gente ter acesso de forma tão rápida, e também tem a ver com essa área de ouro da televisão americana.
Hoje em dia a televisão americana é a reserva criativa para o audiovisual mundial, não está mais no cinema americano, mas na televisão feita nos Estados Unidos, pelos americanos, e isso está chegando pra gente de uma forma muito rápida. Antigamente havia um delay, hoje em dia você vê na mesma hora, e você vê tudo de uma vez, tem a Netflix...
Então eu acho que isso faz com que a TV Globo entenda que ela não disputa com a Record, com o SBT, com a Band, ela disputa com a HBO, com a Netflix... Tem um padrão estético, eu acho, da TV Globo, como uma grande empresa mundial de televisão...
Eu quase fiz agora o “Dois irmãos”, do Luiz Fernando Carvalho, quase fiz. Não fiz porque eles demoraram. Eu fiquei um tempão querendo fazer, querendo voltar, mas quero fazer também uma coisa que me instigue.
Não sei se eu ainda quero contar a história do mocinho, da menina e do vilão, o folhetim. E a não ser que ele seja subvertido de uma forma muito boa, como o que o João Manoel Carneiro fez, eu não tenho mais interesse no que eu estou assistindo.
Jean: Obrigado, nego. É isso...