O economista Adriano Benayon passa a limpo, neste artigo, a dívida pública do Brasil. Desde a sua origem, na década de 50, até os dias de hoje. Ele relata, em linguagem clara e objetiva, os males da economia brasileira subjugada a partir de decisões erradas e anti-Brasil, do poder público. Denuncia também, mais uma vez, a criminosa prioridade para o pagamento do superávit primário - incluída na Constituição de 1988 à revelia dos constituintes. Um artigo para ler e guardar. (OM)
Este artigo desenvolve pontos que abordei no Seminário Internacional “O Sistema da Dívida na Conjuntura Nacional Internacional, realizado em Brasília, de 11 a 13.11.2013.
2. Esse evento focou questões
fundamentais, como as absurdas taxas de juros que a União impõe a Estados e
Municípios como credora deles, exações semelhantes às que ela paga ao
sistema financeiro, liderado pela oligarquia financeira angloamericana.
3. Também revelou provas existentes no Brasil e
em auditorias levadas a efeito no Equador, na Argentina e na Islândia,
reveladoras de que o grosso das dívidas originais não está documentado, e de
que elas se multiplicaram através da capitalização de juros, taxas e comissões
injustificados.
4. Não obstante, até hoje, o Congresso Nacional
não cumpriu a determinação do art. 26 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da CF de 1988: efetuar a auditoria da dívida
pública.
5. Apresentei no telão documentos do
Arquivo da Constituinte que comprovam ter sido introduzido, por meio de fraude,
no art. 166, § 3º, inciso II, da Constituição de 1988, o dispositivo que
privilegia as despesas de juros e amortizações da dívida no Orçamento da União.
6. Dito dispositivo não foi jamais discutido nos
trabalhos da Constituinte, mas entrou, de contrabando, depois de o texto
constitucional ter sido aprovado, sem ele, pelo Plenário, no 1º Turno.
Isso permitiu que as despesas com o serviço da dívida somassem – de 1988 ao presente
- a colossal quantia de R$ 10 trilhões em preços atualizados.
7. Essa causa da ruína da União, Estados e
municípios resulta, por sua vez, de duas outras fontes de sugação dos
recursos do País: 1) a entrega do mercado brasileiro às transnacionais; 2) a dependência
financeira e tecnológica nos investimentos de infra-estrutura e em
indústrias básicas.
8. Essas duas fontes primordiais – começaram a
implantar-se com o golpe de Estado de agosto de 1954, regido pelos serviços
secretos angloamericanos. Elas causam os déficits nas transações correntes com
o exterior e acarretam a desindustrialização e o empobrecimento do País,
juntamente com o serviço da dívida pública delas derivado.
9. A entrega do mercado às
transnacionais causou danos irreversíveis ao País, e o teria feito mesmo
que tivesse havido contrapartidas. Mas foi ainda pior: o governo, além do
mercado, outorgou-lhes subsídios e vantagens de tal monta, que os prejuízos
foram ainda mais profundos e avassaladores.
10. As benesses ao capital estrangeiro deram-se a
partir da Instrução 113 da SUMOC (janeiro de 1955), que autorizou a CACEX
(Carteira de Comércio Exterior) a emitir licenças de importação para
equipamentos usados, sem cobertura cambial, permitindo, também, que
o valor a eles atribuído pelas transnacionais fosse registrado como
investimento estrangeiro em moeda.
11. Isso implicou suprimir a promissora indústria
brasileira, que progredira desde o início do século XX, porquanto deu às
empresas estrangeiras vantagem competitiva insuperável, proporcionando-lhes
produzir no Brasil com custo zero de capital e de tecnologia.
12. De fato, as transnacionais puderam trazer
máquinas e equipamentos usados, amortizados com as vendas nos países de
origem e em outros mercados de grandes dimensões, enquanto as indústrias
nacionais teriam de pagar pela importação de bens de capital e por tecnologia,
ou investir por longos anos para produzir seus próprios bens de capital.
13. Além de doar o mercado brasileiro às
transnacionais, através da licença para trazer seus bens de capital usados, de
valor real zero, e contabilizá-lo por centenas de milhões dólares - base
para transferir capital e lucros para o exterior -, o governo militar-udenista
(1954-55) agraciou as transnacionais com a diferença entre a taxa de
câmbio livre e a taxa preferencial.
14. A livre era mais que o dobro da preferencial.
1) as transnacionais declaravam o valor que quisessem, em moeda
estrangeira, dos bens de capital importados; 2) convertiam-no à taxa livre; 3)
ao transferir capital, “despesas” e lucros para o exterior, a conversão era à
taxa preferencial.
15. Esse triplo favorecimento e mais os ganhos
comerciais das transnacionais com suas importações, mediante sobrepreços –
também altíssimos após o início da produção local - permitiu às
transnacionais transferir fabulosos ganhos para suas matrizes no exterior.
16. Absurdamente, o Brasil entregou o que não
deveria entregar por preço algum, e, além disso, em vez de cobrar, pagou para
entregar.
17. JK foi entreguista tão radical, que não
só manteve os indecentes favorecimentos ao capital estrangeiro, mas reforçou-os
a ponto de ser aberta linha de crédito oficial para financiar as montadoras
estrangeiras. Esse benefício foi negado à empresa brasileira Romi, de Santa
Bárbara do Oeste (SP), que produziu 3.000 unidades da Romisetta, automóvel de
um só banco, de 1956 a 1959.
18. Além disso, JK criou grupos executivos
setoriais, como o GEIA, da indústria automobilística, para facilitar os
procedimentos de entrada em funcionamento das montadoras estrangeiras e baixou
a lei 3.244, de 14.08.1957, e o Decreto 42.820, de 16.12.1957, proporcionando
mais vantagens cambiais aos “investidores” estrangeiros.
19. Não admira que, ao final do quinquênio de JK,
o Brasil sofresse sua primeira crise de contas externas desde o início
dos anos 30. Vargas havia, em 1943, reduzido a dívida externa do País a quase
nada.
20. As transferências das transnacionais são o
principal fator dos elevados déficits nas transações correntes com o
exterior (US$ 80 bilhões nos últimos doze meses), que colocam o Brasil no
limiar de mais uma crise.
21. Sobre os escandalosos sobrepreços, escreveu o
senador Vasconcelos Torres (1920/1982), p. 94 do livro “Automóveis de
Ouro para um Povo Descalço” (1977):“No exercício de 1962 foi registrado, no
balanço consolidado das onze empresas produtoras de veículos automóveis e
caminhões, lucro de 65% em relação ao capital social, constituído
por máquinas usadas, e aumentado posteriormente, com incorporações de
reservas e reavaliação dos ativos.”
22. Na. p. 95 desse livro, há tabela referente
aos balanços de 1963, comparativa de preços de venda da fábrica à distribuidora
com os preços de venda do distribuidor ao público, para quatro montadoras,
entre elas a Volkswagen: “o preço nas distribuidoras era mais de três
vezes o preço na fábrica”, e os donos desta eram os mesmos daquelas ou tinham
participação naquelas.
23. Desde o final dos anos 60, as transnacionais
foram cumuladas por Delfim Neto com colossais subsídios à exportação, como
isenções de IPI e ICM, nas importações de seus bens de capital e insumos, e
créditos fiscais. Daí ao final dos anos 70, a dívida externa do País teve
o crescimento mais rápido de toda sua história.
24. No livro “Globalização versus
Desenvolvimento”, elenco quinze mecanismos através dos quais as transnacionais
transferem recursos para suas matrizes, desde superfaturamento de
importações e subfaturamento de exportações aos pagamentos à matriz por
“serviços” superfaturados e fictícios, afora a remessa oficial de lucros.
25. A entrega do mercado às transnacionais
é a principal, mas não a única fonte das transferências de recursos, dos
déficits de conta corrente com o exterior e, por conseguinte, da dívida
externa, a qual deu origem à hoje enorme dívida interna.
26. Esses déficits e dívidas derivam também
da realização, sob dependência tecnológica dos investimentos públicos na
infra-estrutura e indústrias básicas, como a siderurgia, em pacotes fechados,
caixas pretas, usinas clés-en-mains ou turnkey.[Esses termos significam
importar equipamentos industriais complexos num único pacote, envolvendo
tecnologias as mais diversas, sem que o usuário tenha acesso ao conhecimento de
cada um dos processos que permitiram produzir suas partes e componentes. O
usuário só precisa virar a chave para o conjunto funcionar, mas, se houver
qualquer problema, ele depende do fornecedor para resolvê-lo e para reparar ou
substituir elementos que não funcionem adequadamente.]
27. Em lugar de proporcionar espaço a pequenas e
médias empresas de capital nacional, com capacidade de evolução tecnológica
(engenharia e bens de capital), os governos pós-1954 privilegiaram grandes
projetos, reservando assim o mercado para carteis transnacionais.
28. Ademais, esses governos subordinaram sua
política financeira aos bancos privados - pois o Tesouro não emite
a moeda nem comanda o crédito através de bancos públicos. Assim, o
subdesenvolvimento tecnológico foi agravado, devido à carência
financeira, decorrente da própria política, que levou a buscar financiamento
externo, liderado pelos bancos internacionais multilaterais (Banco Mundial e
BID).
29. Confiada a essas instituições -
dominadas pelas potências imperiais - a direção das concorrências para as
obras públicas, foram favorecidos os carteis transnacionais produtores dos
equipamentos e demais bens de capital. Além disso, participavam do
financiamento os bancos oficiais de exportação daquelas potências, bem como
seus bancos comerciais privados.
30. Assim, ao contrário dos países que
progrediram, a política econômica do Brasil não deu chances às empresas
nacionais de desenvolverem tecnologia e de ganhar dimensão.
31. Nos países onde houve desenvolvimento real,
as compras governamentais foram fundamentais para o surgimento de empresas
de capital nacional dotadas de tecnologias competitivas.
32. Isso ocorreu no Brasil graças à Petrobrás,
mas está decaindo com a quebra do monopólio estatal do petróleo. Houve também
nas telecomunicações e no setor elétrico, mas acabou com as privatizações.
Funcionou também em indústrias ligadas à área militar, a qual foi, depois,
enfraquecida por cortes no investimento público e pela desnacionalização.
33. O financiamento dos bancos públicos
fortaleceu o capital nacional, naqueles aqueles países, inclusive os de
desenvolvimento recente, como Coreia do Sul, Taiwan e China. Enquanto
isso, no Brasil, o BNDES e os demais bancos estatais, há muito, deixaram de
priorizar as empresas nacionais e oferecem empréstimos favorecidos a empresas
transnacionais.
34. As instituições
brasileiras desmoronaram a partir da crise da dívida de 1982, e esta
decorreu: 1) da entrega do mercado às transnacionais, que se
assenhorearam da produção industrial no País, inclusive bens de capital; 2) de
os investimentos públicos terem utilizado equipamento importado e/ou produzido
localmente por empresas estrangeiras, em grau muito maior que o devido à
incapacidade de oferta adequada por empresas de capital nacional.
35. A dependência tecnológica
foi agravada em função da entrega do mercado às transnacionais. Além disso: a)
as empresas nacionais foram asfixiadas pelas políticas restritivas aos
investimentos públicos e ao crédito - tornado proibitivo sob o governo de
1964 a 1966; b) o governo recorreu, em grau crescente, aos empréstimos e
financiamentos estrangeiros, em face do crescimento da própria dívida. Esse
recurso era, de início, desnecessário, pois o Estado poderia emitir moeda e
crédito.
36. Apesar de os choques do
petróleo terem contribuído para a explosão da dívida externa nos anos 70 – pois
o Brasil era importador líquido - isso não foi fator decisivo. Não o foi
tampouco a brutal elevação dos juros nos EUA em agosto de 1979, quando, de
resto, a situação das contas externas brasileiras já se mostrava insustentável.
37. Outros países com ainda
maior coeficiente de importação de petróleo - como Alemanha, Itália, França,
Japão, Coreia - não caíram, em 1982, na mesma situação de Brasil,
Argentina e México, caracterizados pelo modelo dependente e pela ocupação de
setores estratégicos de suas economias pelos investimentos estrangeiros
diretos.
38. Desde 1982, o governo pôs-se de joelhos
diante dos bancos comerciais e dos governos das potências hegemônicas, a
pretexto da crise da dívida externa, oficializando a submissão ao FMI e Banco
Mundial e aos planos dos banqueiros (Baker e Brady - 1983-1987).
39. Assim, a desnacionalização e a primitivização
tecnológica, consequências das políticas adotadas desde o final de 1954
tornaram-se ainda mais intensas. A condição colonial ficou evidente na
Constituição de 1988, não só através do dispositivo fraudulentamente inserido
no art. 166 (Vide § 5 acima) para privilegiar as despesas com o serviço da
dívida, mas também de outras normas, como o art. 164.
40. Esse determina que a competência da União
para emitir moeda seja exercida exclusivamente pelo Banco Central (BACEN),
e o proíbe de conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao
Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição
financeira. Dispõe, ademais, que os saldos de caixa da União serão depositados
no BACEN.
41. Ora, o Tesouro, que deveria ser o emissor da
moeda e financiar parte dos investimentos públicos desse modo, não pode
fazê-lo. Portanto, a Constituição força o Tesouro a endividar-se, emitindo
títulos públicos. Com isso assegura lucros absurdos aos bancos privados, os
quais recebem recursos do BACEN, a baixo custo, e os aplicam em títulos do
Tesouro, que pagam juros elevadíssimos.
42. Esses juros são fixados pelo COPOM
(Comitê de Política Monetária), controlado pelo BACEN, um feudo dos bancos
privados. Essa é mais uma fonte de enriquecimento sem causa, como a
decorrente do privilégio de criar dinheiro do nada, fazendo empréstimos em
múltiplo dos depósitos.
43. Banco é uma concessão que o Estado só deveria
dar à mãe dele, a sociedade: é uma concessão que só tem sentido se for estatal
e exercer suas funções em prol da sociedade. No Brasil esta não poderia estar
sendo mais traída, pois aqui são praticadas taxas de juros altíssimas sem
qualquer razão, afora a mistificação.
44. Chegou-se a taxas básicas para títulos
públicos acima de 40%, inclusive após o Plano Real, falsamente apresentado como
saneador da inflação. E, de resto, para reduzir a inflação faz mais sentido
baixar que elevar as taxas de juros.
45. A taxa de 2% aa. capitalizada mensalmente por
30 anos não faz dobrar um saldo devedor. A de 15% faz que o saldo seja
multiplicado por 66,3.
46. O Brasil já estava subjugado em 1988, e
depois o opróbrio intensificou-se a cada eleição. Veio a liquidação de
estatais estratégicas; a lei da desestatização; os planos “antiinflacionários”,
repressores da economia produtiva; dezenas de emendas constitucionais
contrárias ao País, como a que acabou com qualquer possibilidade de distinção
entre empresa de capital nacional e empresa de capital estrangeiro.
47. Mais: as infinitamente danosas privatizações;
abertura das importações, sem contrapartida; isenção de impostos e
contribuições à exportação de produtos primários; adoção do estatuto da
OMC e da lei de propriedade industrial, que afunda o País no apartheid tecnológico;
lei 9.478/1997: entrega do petróleo às transnacionais; lei de
“responsabilidade” fiscal: prioridade absoluta aos gastos com a dívida pública;
demissão do Estado com a criação das agências e as concessões; parcerias
público-privadas: o Estado dá dinheiro, financia e garante lucro sem risco aos
concentradores privados; intensificação dos subsídios e privilégios aos
“investimentos” diretos estrangeiros.
48. Em resumo, aumenta-se a dose das políticas de
desnacionalização da economia, causadoras originárias da dívida pública. A
desnacionalização gera mais dívida, e esta aprofunda o rombo.
49. Fixam-se taxas de juros altíssimas sobre o
montante enorme dessa dívida. Desse modo, mesmo sugando os contribuintes,
com tributos, o Estado não consegue receitas suficientes para pagar a conta dos
juros.
50. Isso demonstra que essas taxas não têm outro
sentido senão acarretar o crescimento sustentado da dívida, por meio da
capitalização de juros. Desnecessário reiterar o quanto tais políticas
são destrutivas.
51. Além de escorchada pela carga tributária, a
sociedade o é adicionalmente pelos preços dos produtos fornecidos por
oligopólios e carteis transnacionais.
52. Ela sofre, pois, de múltiplos ataques que
corroem a renda disponível dos cidadãos: 1) os preços abusivos dos produtos que
se usa ou consome; 2) impostos e contribuições fiscais acima da capacidade
contributiva; 3) crescente insuficiência dos investimentos públicos, decorrente
de quase metade das despesas serem torradas com o improdutivo serviço da dívida,
bem como de desonerações fiscais e subsídios em favor do sistema financeiro e
dos concentradores em geral.53. Desgastam ainda mais a renda social e a
qualidade de vida das pessoas: 1) a lastimável condição das
infra-estruturas, especialmente a de transportes e a de energia; 2) a baixa e
decadente qualidade da educação e da saúde, inclusive saneamento e prevenção;
3) a carência de empregos, inclusive dos de produtividade elevada e bem
remunerados.
(*) Adriano Benayon é doutor
em economia e autor do livro Globalização versus Desenvolvimento.