CINEMA - Vá ao cinema, alugue em DVD, dê um jeito, mas assista com o coração na boca a “A Separação”, Oscar de melhor filme estrangeiro
25/03/2012
às 14:00 \ Livros & Filmes
COM O CORAÇÃO NA BOCA
O iraniano A Separação é um desses filmes excepcionais que só de muito em muito tempo surgem – e põem o espectador a nocaute
Em janeiro, quando ganhou o Globo de Ouro de filme estrangeiro em uma antecipação dada como quase certa do Oscar (que se confirmaria), o diretor Asghar Farhadi recebeu o prêmio com sobriedade incomum.
Em voz baixa, disse que, a caminho do palco, pensara se deveria mencionar seus pais, sua mulher, suas filhas, sua equipe – mas resolvera falar apenas de seu povo. “O Irã é um país de pessoas que amam a paz”, falou simplesmente.
Ser iraniano, hoje, é preceder a própria existência de um pedido de desculpas. E essa triste realidade, assim como pais, mulheres e filhas, é o ponto a partir do qual o excepcional A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, Irã, 2011), se expande em círculos cada vez mais abrangentes e explosivos, até abarcar praticamente todo tópico e preconcepção que se poderiam levantar sobre o Irã hoje.
Impulsos divergentes rumo à religião e ao secularismo, à arbitrariedade e ao direito
Abarcá-los e, então, retalhá-los, expondo suas complicadas vísceras com uma paixão e uma premência que, por si só, já nocauteariam o espectador. Não bastasse tal ferocidade, A Separação é ainda uma magnífica peça de cinema, construída sobre um roteiro superlativo, visualmente executada de forma a fazer o que está no papel repercutir muito além do que se poderia pôr em palavras e confiada a atores que compartilham com seu diretor a necessidade de se expressar.
É o tipo de filme, enfim, que só de muito em muito tempo surge, seja onde for. Mas que tenha surgido do Irã, neste momento em que o país se converte no fulcro principal da instabilidade geopolítica, é oportuno: quanto mais o presidente Ahmadinejad vocifera suas ambições aniquiladoras, mais se torna necessário compreender sobre que base se assenta sua loucura.
E essa base, como vista por Farhadi, é tudo menos homogênea: é múltipla e fraturada, dividida entre impulsos divergentes rumo à religião e ao secularismo, à arbitrariedade e ao direito. É, portanto, uma sociedade cheia de espaços indefinidos entre seus diversos compartimentos, espaços esses propícios à fricção e ao imprevisto – uma visão que a trama espelha até em seu próprio desenrolar.
O rompimento de mentira começa a se tornar verdadeiro
Na primeira cena de A Separação, um homem e uma mulher estão sentados de frente para a câmera – a qual ocupa o lugar do juiz que os ouve. Simin e Nader (Leila Hatami e Peyman Moadi) conseguiram um visto para sair do país.
Simin quer emigrar já e tirar dali Termeh, a filha de 11 anos. Seu marido, Nader, planejava ir junto – mas agora o pai dele está com a doença de Alzheimer. Solução: o casal se divorciará, e assim a mulher poderá viajar sozinha. Mas, na hora de dizer ao juiz que concorda que a menina vá junto, o marido negaceia; ele ama a filha e não consegue se imaginar sem ela.
Ora, se ele ama verdadeiramente Termeh, diz a mulher, então sua obrigação é deixá-la ir. Quem está sendo egoísta, e quem está com a razão? A percepção óbvia é que seria cruel segurar no Irã uma menina inteligente e crítica como Termeh (e a atriz Sarina Farhadi, filha do diretor, claramente é ambas as coisas) – mas ir embora significa também que pessoas instruídas como seus pais devem admitir sua impotência e entregar o futuro aos que insistem em retroceder ao passado.
E o rompimento que era de mentira começa a se tornar verdadeiro. Simin e Nader estão divididos, desde o cerne, sobre a possibilidade de existir numa sociedade como essa.
Trêmula de medo de pecar contra o Islã
Questões bem mais íntimas os dividem também: na dinâmica familiar que aos poucos se esclarece, Simin é uma mulher que por temperamento tende a se acovardar, e Nader é quem tem o hábito de encorajar Termeh a falar por si mesma. Por isso ele teme deixá-la só com a mãe.
Por outro lado, ele é homem, o que num Estado islâmico lhe dá grande vantagem – o que ele pode saber de fato da ânsia de largar tudo? Esses desequilíbrios vão tirar de vez o chão ao casal com a entrada, na história, de seu elemento mais inflamável.
Como Simin saiu de casa, Nader tem de contratar uma empregada para cuidar de seu pai. Chega Razieh (Sareh Bayat), coberta todo o tempo por um shador, receosa de que seu marido desempregado, Hodjat (Shahab Hosseini), descubra que ela passa o dia na casa de um homem tecnicamente solteiro e trêmula de medo de cometer qualquer pecado contra o Islã.
Quando o pai de Nader urina nas calças, ela liga para um religioso para saber se pode trocá-lo (embora não se ouça a pessoa do outro lado da linha, fica claro que a resposta vem cheia de resistências e condicionais).
O inferno desaba sobre os personagens
Razieh não contou a Nader que está grávida, e é possível que, com tanto pano por cima dela, ele não o tenha percebido. Assim, quando patrão e empregada têm um grave desentendimento e ele a empurra porta afora, o inferno desaba sobre Simin e Nader, Razieh e Hodjat – e sobre Termeh e a pequena Somayeh (Kimia Hosseini), filha da empregada, únicas testemunhas reais do que se passou ali.
Daí para diante, o filme é um redemoinho, intenso a ponto de provocar palpitação.
Asghar Farhadi já demonstrara seu talento para construir enredos a partir de eventos desencadeantes em Procurando Elly, de 2009, mas aqui o faz com brilho singular. Diferenças sociais e religiosas são postas sob um foco nítido.
Não há tema que o diretor não aborde e vire do avesso
Orgulho masculino, submissão feminina, a conduta do sistema judicial numa teocracia, os pontos de vista de vizinhos e professores, jovens e velhos – não há tema que Farhadi não aborde e vire do avesso. Acima de tudo, porém, está o tema do olhar ainda não adulterado de Termeh e Somayeh sobre a violência e a desrazão do conflito que opõe os dois casais – entre si e um ao outro.
Curiosamente, A Separação escapou ao veto dos censores iranianos e acabou fazendo mais de 3 milhões de espectadores em seu país de origem. Mas não é só com eles que Farhadi quer falar: é com o mundo que ele deseja – precisa – imperiosamente se comunicar.
E, ao espectador que desde aquela primeira cena foi colocado no lugar do juiz, desafia-se: que tente chegar a um – um só que seja – veredito que lhe pareça justo.
(Texto de Isabela Boscov publicado na edição impressa de VEJA)
Tags: A Separação, Ahmadinejad, Asghar Farhadi, censura, estado islâmico, filme, Globo de Ouro, Irã, Leila Hatami, Oscar, Peyman Moadi, Sarina Farhadi, shador
Olimpia Pinheiro
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