O PAÍS DO FAZ DE CONTA
"Por um brasileiro que quer enganar"
Infelizmente,
vivenciamos tempos muito estranhos, em que se tornou lugar-comum falar dos
descalabros que, envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira
─ composta, na maior parte, de gente ordeira e honesta ─ um misto de revolta,
desprezo e até mesmo repugnância. São tantas e tão deslavadas as mentiras, tão
grosseiras as justificativas, tão grande a falta de escrúpulos que já não se
pode cogitar somente de uma crise de valores, senão de um fosso moral e ético
que parece dividir o País em dois segmentos estanques ─ o da corrupção,
seduzido pelo projeto de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura, e
o da grande massa comandada que, apesar do mau exemplo, esforça-se para
sobreviver e progredir.
Não passa dia sem
depararmos com manchete de escândalos. Tornou-se quase banal a notícia de
indiciamento de autoridades dos diversos escalões não só por um crime, mas por
vários, incluindo o de formação de quadrilha no mensalão o maior escândalo que o país já teve, como por último consignado em
denúncia do Procurador-Geral da República, Doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
A rotina de desfaçatez e indignidade parece não ter limites,
levando os já conformados cidadãos brasileiros a uma apatia cada vez mais
surpreendente, como se tudo fosse muito natural e devesse ser assim mesmo; como
se todos os homens públicos, nas mais diferentes épocas, fossem e tivessem sido
igualmente desonestos, numa mistura indistinta de escárnio e afronta, e o erro
passado justificasse os erros presentes.
A repulsa dos que sabem o valor do trabalho árduo se transformou em indiferença e desdém. E seguimos como se nada estivesse acontecendo. Perplexos, percebemos, na simples comparação entre o discurso oficial e as notícias jornalísticas, que o Brasil se tornou um país do faz-de-conta. Faz de conta que não se produziu o maior dos escândalos nacionais, que os culpados nada sabiam ─ o que lhes daria uma carta de alforria prévia para continuar agindo como se nada de mal houvessem feito. Faz de conta que não foram usadas as mais descaradas falcatruas para desviar milhões de reais, num prejuízo irreversível em país de tantos miseráveis. Faz de conta que tais tipos de abusos não continuam se reproduzindo à plena luz, num desafio cínico à supremacia da lei, cuja observação é tão necessária em momentos conturbados.
Se, por um lado, tal conduta preocupa, porquanto é de analfabetos políticos que se alimentam os autoritarismos, de outro surge insofismável a solidez das instituições nacionais. O Brasil, de forma definitiva e consistente, decidiu pelo Estado Democrático de Direito. Não paira dúvida sobre a permanência do regime democrático.
Inexiste, em horizonte próximo ou remoto, a possibilidade de
retrocesso ou desordem institucional. De maneira adulta, confrontamo-nos com
uma crise ética sem precedentes e dela haveremos de sair melhores e mais
fortes. Em Medicina, “crise” traduz o momento que define a evolução da doença
para a cura ou para a morte. Que saiamos dessa com invencíveis anticorpos
contra a corrupção, principalmente a dos valores morais, sem a qual nenhuma outra
subsiste.
Nesse processo de
convalescença e cicatrização, é inescusável apontar o papel do Judiciário, que
não pode se furtar de assumir a parcela de responsabilidade nessa avalancha de
delitos que sacode o País. Quem ousará discordar que a crença na impunidade é
que fermenta o ímpeto transgressor, a ostensiva arrogância na hora de burlar
todos os ordenamentos, inclusive os legais? Quem negará que a já lendária
morosidade processual acentua a ganância daqueles que consideram não ter a lei
braços para alcançar os autoproclamados donos do poder? Quem sobriamente
apostará na punição exemplar dos responsáveis pela sordidez que enlameou
gabinetes privados e administrativos, transformando-os em balcões de tenebrosas
negociações?
Essa pecha de lentidão
recai sobre o Judiciário justamente, já que não lhe cabe outro procedimento
senão fazer cumprir a lei e rápido, essa mesma lei que por vezes o engessa e
desmoraliza, recusando-lhe os meios de proclamar a Justiça com efetividade, com
o poder de persuasão devido. Pois bem, se aqueles que deveriam buscar o
aperfeiçoamento dos mecanismos preferem ocultar-se por trás de negociatas, que
o façam sem a falsa proteção do mandato. A República não suporta mais tanto
desvio de conduta.
Políticos
Políticos
Ao reverso do
abatimento e da inércia, é hora de conclamar o povo, principalmente os mais
jovens, a se manifestar pela cura, não pela doença, não pela podridão do
vale-tudo, que corrói, com a acidez do cinismo, a perspectiva de um futuro
embasado em valores como retidão, dignidade, grandeza de caráter, amor à causa
pública, firmeza de propósitos no empenho incondicional ao progresso efetivo, e
não meramente marqueteiro, do País. Ao usar a voz da urna, o povo brasileiro
certamente ouvirá o eco vitorioso da cidadania, da verdade ─ que, sendo o maior
dos argumentos, mais dia, menos dia, aparecerá.
Àqueles que continuam
zombando diante de tão simples obviedades, é bom lembrar que não são poucos os
homens públicos brasileiros sérios, cuja honra não se afasta com o tilintar de
moedas, com promessas de poder ou mesmo com retaliações, e que a imensa maioria
dos servidores públicos abomina a falta de princípios dos inescrupulosos que
pretendem vergar o Estado ao peso de ideologias espúrias, de mirabolantes
projetos de poder. Aos que laboram em tamanhas tolices, nunca é demais frisar
que se a ordem jurídica não aceita o desconhecimento da lei como escusa até do
mais humilde dos cidadãos, muito menos há de admitir a desinformação dos fatos
pelos agentes públicos, a brandirem a ignorância dos acontecimentos como tábua
de salvação.
Incumbe a cada eleitor perceber que o voto, embora individualizado, a tantos outros se seguirá, formando o grande todo necessário à escolha daqueles que o representarão. Impõe-se, nesse sagrado direito-dever, a conscientização, a análise do perfil, da vida pregressa daqueles que se apresentem, é de presumir – repito – para servir com honestidade de propósito e amor aos concidadãos, dispostos, acima de tudo, a honrar a coisa pública.
O Judiciário deve compromete-se com redobrado desvelo na aplicação da lei. Não haverá
contemporizações a pretexto de eventuais lacunas da lei, até porque, se omissa
a legislação, cumpre ao magistrado interpretá-la à luz dos princípios do
Direito, dos institutos de hermenêutica, atendendo aos anseios dos cidadãos,
aos anseios da coletividade.
Que ninguém se engane: não ocorrerá tergiversação capaz de turbar o real objetivo da lei, nem artifício conducente a legitimar a aparente vontade das urnas, se o pleito mostrar-se eivado de irregularidades. Esqueçam, por exemplo, a aprovação de contas com as famosas ressalvas. Passem ao largo das chicanas, dos jeitinhos, dos ardis possibilitados pelas entrelinhas dos diplomas legais. Repito: não haverá condescendência de qualquer ordem. Nenhum fim legitimará o meio condenável. A lei será aplicada com a maior austeridade possível – como, de resto, é o que deve ser. Bem se vê que os anticorpos de que já falei começam a produzir os efeitos almejados. Esta é a vontade esmagadora dos brasileiros.
Osvaldo Aires Bade - Comentários Bem Roubados na "Socialização"
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