Khaled Hussein Ali
nasceu em 1970, no leste do Líbano. Sua cidade. Kamed El Laouz, fica no Vale do
Bekaa. Nessa região. Ali, seguidor da corrente sunita do islamismo. prestou
serviço militar. Depois, sumiu. No início dos anos 90, reapareceu em Sio Paulo.
Casou-se e teve uma filha. Graças a ela obteve, em 1998. o direito de viver no
Brasil. Mora em baqueta, na Zona Leste paulistana, e sustenta sua família com
os lucros de uma lan house localizada no bairro de Vila Matilde. Bonachão,
passa o dia na porta da loja distribuindo cumprimentos.
Ali leva uma vida
dupla. É um dos chefes do braço propagandístico da AI Queda. a organização
terrorista comandada pelo saudita Osama bin Laden. De São Paulo, o libanês
coordena extremistas do lilhad Media Baualion em dezessete países. Os textos ou
vídeos dos discípulos de Bin Laden são divulgados mediante sua aprovação. A
regra também vale para as traduções dos discursos do terrorista saudita e para
os vídeos veiculados pelos extremistas na internet. Mais: cabe ao libanês dar suporte
logístico às operações da AI Qaeda. Ele faz parte de uma rede de terroristas
que estende seus tentáculos no Brasil.
Tratado como "Príncipe" por seus comparsas. Ali foi seguido por
quatro meses pela Policia Federal, até ser previ. em março de 2009. Os agentes
sabiam como ele operava, mas não conseguiam acessar os dados de seu computador.
protegido pelo programa de criptografia da AI Qaeda o Mojahideen Secrets 2.0.
Para ter acesso a suas informações, os policiais deveriam apreender seu
computador aberto. Adotaram um estratagema simples: monitoraram Ali até que ele
entrasse na internet e lhe telefonaram. Deram o bote enquanto ele atendia a
ligação. O equipamento estava repleto de arquivos que comprovam sua posição de
liderança no terror islâmico.
Por meio de seus e-mails, é passível reconstituir
as ligações do libarás com guerrilheiros afegãos, provavelmente do Talibã. Em
janeiro de 2009. Ali encomendou, recebeu e remeteu para endereços no
Afeganistão mapas e cartas topográficas daquele pais. Depois, ordenou a seus
subordinados que arranjassem manuais para ajudar seus "irmãos
combatentes" a compreender esse material. Duas horas mais tarde, recebeu
um curso produzido pelas brigadas al-Qassam, o braço armado do Hamas, partido
dos radicais palestinos que governam a Faixa de Gaza.
Em fevereiro de 2009, o Jihad Media Battalion foi encurralado e Ali foi
acionado para defendo-lo. As 20 horas do dia 18 daquele más, o libanês recebeu
um e-mail informando que um de seus homens havia sido preso em Gaza. Estaria em
mãos do Mossad, o serviço secreto israelense. Com a notícia, veio um pedido
para que Ali bloqueasse os acessos do comparsa detido aos arquivos do Jihad
Media Battalion. Essa medida preservaria o sigilo da organização e o anonimato
dos seus militantes. De São Paulo, ele "desligou" o terrorista
capturado.
No mesmo dia. Ali recebeu uma mensagem na qual se relatava a invasão do
computador de outro ciberjihadista por um vírus espião. Dessa vez, ordenou a
seus liderados que espalhassem o vírus por meio de spams, a fim de confundir os
serviços de inteligência ocidentais. Sua eficiência nessas operações foi
elogiada por um terrorista que se identifica como "Vice-Príncipe" da
A1 Qaeda no Iraque: "Vocês estio provando para os cruzados (ocidentais) que
estamos em seus países, que não podem nas proibir de operar dentro de seu
território nem de falar com seus filhos"
Além das provas de terrorismo na internet. a Polícia Federal encontrou no
computador de Ali spams enviados aos Estados Unidos para incitar o ódio a
judeus e negros. Outros arquivos, que injuriam o presidente Barack Obama ,
foram remetidos a foros conservadores americanos com o objetive de tumultuar a
discussão política. Abordado por VEJA, Ali negou sua identidade. Esse material,
no emanto, permitiu que a Polícia Federal o indiciasse por racismo, incitação
ao crime e formação de quadrilha. Salvouse da acusação de terrorismo porque o
Código Penal Brasileiro não prevê esse delito. O libanês permaneceu 21 dias
preso. Foi liberado porque o Ministério Público Federal não o denunciou à
Justiça Casos corta o de Ali alimentam as divergências do governo americano com
o Brasil.
Há vinte anos as autoridades nacionais conhecem-e negligenciam-os relatórios da
Interpol, da CIA, do FBI e do Departamento do Tesouro americano a respeito das
atividades de extremistas no Brasil. Os atentados contra alvos judeus em Buenos
Aires, que mataram 114 pessoas em 1992 e 1994, deram uma guinada no tratamento
da questão. A Policia Federal reagiu constituindo um serviço antiterrorismo.
Graças a ele, descobriu que, em 1995. Bin Laden e Khalid Shaikh Mohammed, que o
ajudou a planejar a destruição do World Trade Center em 11 de setembro de 201
1, estiveram em Foz do Iguaçu.
A passagem de Bin Laden foi revelada por VEJA
oito anos depois. Apesar de as tentáculos do terror terem se aprofundado iro
pais, o governo federal desmobilizou o serviço em 2009. Todos os delegados do
seta foram removidos, o que prejudicou as investigações. Há dois meses, VEJA
teve acesso aos relatórios dessa equipe. Além de Ali, vinte militantes da AI
Qaeda, do Hezbollah, do Hamas, do Grupo Islâmico Combatente Marroquino e do
egípcio al-Gama'a al-Islamiyya usam ou usaram o Brasil como esconderijo, centro
de logística, fonte de captação de dinheiro e planejamento de atentados. A
reportagem da revista também obteve os relatórios enviados ao Brasil pelo
governo dos Estados Unidos.
Esses documentos permitiram que VEJA localizasse Alie outros quatro
extremistas. Eles vivem no Brasil como se fossem cidadãos comuns. Um deles
chegou a ser condenado em seu país de origem. Hesham Ahmed Mahmoud Eltrabily é
apontado pelo Egito como participante da chacina de 62 turistas que visitavam
as ruínas de Luxor, em 1997. Com uma ordem de prisão emitida pela Interpol, foi
capturado em São Paulo, cinco anos depois.
O Supremo Tribunal Federal negou sua
extradição, alegando que as provas apresentadas pelo governo egípcio não eram
peremptórias. Agora, o egípcio comercializa eletrônicos na Galeria Pagé, um dos
centros de venda de contrabando da capital paulista. VEJA relatou o conteúdo
desta reportagem aos funcionários de sua loja, mas Eltrabily não retornou os
telefonemas. O caso de Eltrabily é semelhante ao de Mohamed Ali Abou Elezz
Ibrahim Soliman, que não foi localizado por VEJA. Soliman também foi sentenciado
no Egito por participar do atentado de Luxor. Preso em 1999, Soliman Teve sua
extradição negada pelo Supremo, que encontrou aros formais de instrução do
processo, como falhas na tradução de documentos. Como Eltrabily ele vende
muamba, mas em Foz do Iguaçu. Com o amigo comparsa, ele forma a célula
brasileira do al-Gama´a al-Islamiyya. subordinado à AI Qaeda.
Acusado de arquitetar atentados contra instimições judaicas que vitimaram 114
pessoas em Buenos Aires, nos anos de 199? e 1994, o iraniano Mohsen Rabbani é
procurado pelo Interpol mas entro e sai do Brasil com frequencia -:em ser
incomodado. Funcionário do governo iraniano, ele usa passaportes emitidos com
nomes falsos para visitar um irmão que moco em Curitiba A última vez que isso
ocorreu foi em setembro do ano passado. Quando a Interpor alertou a Polícia
Federal para sua presença no Brasil. ele já linha fugido.
Mas não são apenas os
laços familiares que «azem esse terrorista ao país. A Agência Brasileira de
Inteligência (Abin) descobriu que Rabbani já recrutou, pelo meros, duas dezenas
de jovens do interior de Sio Paulo, Pernambuco e Paraná para cursos de
"formação religiosa" em Teerã.
"Sem que ninguém perceba, está surgindo uma geração de extremistas
islâmicos no Brasil", diz o procurador da República Alexandre Camanho de
Assis, que coordena o Ministério Público em treze estados e no Distrito
Federal.
Fm São Bernardo do Campo, no ABC Paulista virem dois brasileiros aliciados.
Suas histórias foram descobertas pela CIA durante o interrogatório de um dos
líderes da AI Qaeda, o saudita Abu Zubaydah, o mesmo que convenceu o inglês
Richard Reid a instalar uma bomba no salto do sapato e remar explodi-Ia em um
voo que ia de Paris para Miami, em 2001. Preso em Guantânamo, Zubaydah foi
severamente torturado com simulações de afogamento. Em Seu livro. Pontos de
Decisão. o ex-presideme George W. Bush alega que a tonam de Zubaydah ajudou a
impedir ou«os atenrados. Em Guantánamo, o jihadista saudita tomou que acolhera
os paulistas Alan Cheidde e Anuar Pechliye no campo de treinamento de
combatentes de Khaldan, no Afeganistão. Cheidde pertence a uma família famosa
no ABC paulista. Seu pai, Felipe Cheidde, amealhou uma das maiores fortunas da
regido com unia empresa de factoring, bingos e loterias. Chegou a ser depurado
federal constituinte pelo PMDB. Conto mantém um orne da quarta divisão
paulista, o Esporte Clube São Bernardo, ele é popular em sua cidade. Sua casa
de 1400 metros quadrados é uma das mais suntuosas de São Bernardo do Campo.
Ainda assim, as conexões de seu filho, Alan, com o terror passaram
despercebidas das autoridades brasileiras até 2004, quando a CIA as comunicou à
Polícia Federal. Os agentes americanos relataram que Cheidde e seu amigo
Pechliye haviam sido incumbidos de arranjar passaportes brasileiros para
integrantes da Al Qaeda. Intimados pela Policia Federal, ambos contaram que
haviam perdido seu passaporte duas vezes, em 2000 e 2001, e que não se
lembravam das circunstancias em que isso teria ocorrido, Apesar de considerarem
a desculpa esfarrapada, as autoridades brasileiras decidiram liberá-los, A
VEJA, Cheidde disse que sua viagem ê assunto privado. Pechliye não retornou as
ligações da reportagem. Uma das raras ocasiões em que os terroristas se eram
incomodados foi em junho de 2005. Naquele mês, a Policia Federal aproveitou a
Operação Panorama contra a imigração ilegal para prender 21 extremistas. Eles
foram acusados de falsidade ideológica e adulteração de documentos para obter
vistos de permanência no pais. Faziam isso forjando casamentos com brasileiras.
Os radicais escolhiam mães solteiras, pagavam-Lhes 1000 reais para participar
da fraude e reconheciam os filhos delas como seus. Tornavam-se formalmente pais
de filhos brasileiros e, por isso, não podiam mais ser extraditados.
O bando era chefiado pelo libanês Jihad Chaim Baalbalti e pelo jordanismo Sael
BasheerYahya Najib Atari, um proeminente líder muçulmano de Foz do Iguaçu. Com
a quadrilha, a Policia Federal apreendeu 1206 passaportes emitidos por
Portugal. Espanha e México. Na maioria roubados, esses documentos eram vendidos
a 11 0(l0 dólares cada um para extremistas procurados pela polícia de diversos
países ou para radicais que querem se deslocar sem deixar rastros. O esquema de
Baalbaki e Atari não se restringia ao Brasil. O Kuwait acusa o jordaniano de se
associar a falsificadores locais para facilitar a fuga de jihadistas. A maioria
da comunidade islâmica de Foz do Iguaçu rechaça o terrorismo. Fugitiva da
guerra e dos atentados em seus países de origem, ela é a principal fonte de
informação da Policia Federal.
Na Tríplice Fronteira de Brasil. Argentina e
Paraguai. os radicais formam um contingente marginal entre os 12000 muçulmanos
que lá vivem. Mas isso não impediu Atari de presidir a Associação Árabe
Palestina nem de apresentar-se como um porta-voz da comunidade. Fui em tal
condição que ele posou para a fotografia que ilustra teta reportagem. Abordado
depois por VEJA. Atari, que, assim corno Baalbaki, responde em liberdade ao
processo por falsidade ideológica, formação de quadrilha e facilitação de
imigração ilegal, afirmou que não gostaria de falar sobre as acusações que lhe
são feitas.
A ousadia de Atari reflete o conforto que as leis lhe garantem. Ele e Baalbaki,
além de estarem soltos, só serão extraditados se forem condenados. "Os
terroristas se aproveitam da fragilidade da legislação brasileira ', admitiu,
em audiência na Câmara dos Deputados, Daniel Lorenz, ex-chefe do Departamento
de Inteligência da Polícia Federal e atual secretario de Segurança do Distrito
Federal. A dupla continua fazendo negócios no Paraná, uma espécie de wall
Street da jihad "A Tríplice Fronteira é, hoje, uma artéria financeira do
Hezbollalh" escreveu o diretos do Escritório de Controle de Ativos
Estrangeiros do Tesouro americano, Arfam Szubin, em relatório enviado ao
Departamento de Estado de seu país, fazendo referencia ao grupo libanês,
Chegou-se a essa situação por causa da recusa do governo brasileiro a encarar o
terrorismo. Em 2007, um grupo de deputados tentou regulamentar o artigo
constitucional que prevê o crime de terrorismo.
Acabou vencido pelo então
secretário nacional de Justiça, Pedro Abramovay. "Ele alegava que uma lei
antiterror atrairia terroristas", conta o ex-deputado Raul Jungmann
(PPS-PE). Por esse raciocínio, ou fatia de, o Brasil deveria abolir as leis
contra homicídio, roubo e tráfico de drogas. Afinal de contas, elas também
incitariam as pessoas a delinquir.
A leniência com o extremismo islâmico é característica também da diplomacia
brasileira, que não reconhece o Hezbollah, o Hamas nem as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (Farc) como terroristas. Em parte, ela está
relacionada à tentativa de vender a imagem do Brasil corno a de um paraíso
tropical blindado contra atentados. Mas apresenta-se recheada também da simpatia
da esquerda pelos jihadistas, inimigos viscerais dos Estadas Unidos. Uma lei
antiterror alcançaria, ainda, "movimentos sociais", como o Movimento
dos Atingidos por Ramagens, que, em 2007, ameaçou abrir as comporias da hidrelétrica de
Tucuruí, e o Movimento dos Sem Terra, que invade e depreda fazendas. "A
Polícia Federal e o governo americano apontam a atuação dos movimentos sociais
como um dos principais impeditivas para um combate mais efetivo ao
terror", diz Jungínann.
Embora seja autora das investigações descritas nesta reportagem, a Polícia
Federal assume um comportamento ambíguo ao comentar as descobertas de seu
pessoal. A instituição esquiva-se, afirmando que &,não rotula pessoas ou
grupos que, de alguma forma, possam agir com inspiração terrorista". Esse
discurso dúbio e incoerente não apenas facilita o enraizamento das organizações
extremistas no Brasil como cria grandes riscos para o futuro imediato. As
cartilhas terroristas recomendam aos militantes que desfiram atentados em
ocasiões em que suas ações ganhem visibilidade. O temor de policiais federais e
procuradores ouvidos por VEJA é que eles vejam essas oportunidades na Copa de
2014 e na Olimpíada de 2016.