Inconformados com a
violência, aumento da criminalidade e com a corrupção de policiais
tradicionais, população se reúne para criar polícia comunitária em cidade
mexicana.
A pick-up branca viaja mantendo a velocidade enquanto sobe pelas curvas da
Sierra Madre Central. São pouco mais de dez da noite e seis veículos carregados
de guardas armados com fuzis começaram a ronda cotidiana nas cercanias do
município de Huamuxtitlán, no estado mexicano de Guerrero.
São camponeses, comerciantes, pequenos agricultores da região. Com caras sérias
e mãos ásperas segurando armas que até poucos meses atrás serviam unicamente
para caçar, os homens da Frente Cidadã Comunitária se distribuem pelos pontos
nos quais com mais frequência aconteceram ataques, sequestros e agressões.
Os homens vão em silêncio. Na região, estão presentes grupos armados locais de
delinquência, mas também operam cartéis do narcotráfico, filiados aos governos
municipais mais ou menos de todos os partidos.
“A situação era ingovernável”, afirma Miguel, um dos conselheiros anciãos da
Frente Cidadã e responsável por um programa diário da rádio comunitária. “O
nível de corrupção das forças da polícia é vergonhoso. São eles que apoiam os
grupos do crime organizado. Em vez de proteger a cidadania, são pagos para
sequestrar, assassinar, roubar e agredir.”
Desde fevereiro de 2012, o conselho municipal do pequeno município de Guerrero
optou pela autodefesa armada. São rondas de cidadãos auto-organizados, que
seguem as diretrizes das assembleias populares. A polícia municipal foi
desarmada e a prefeitura, ocupada, depois do sequestro de 17 pessoas em junho
de 2012.
“Quando ocupamos a sede da polícia municipal, depois do sequestro de 17 pessoas
que incomodavam o governo local, encontramos uma menina de 13 anos algemada a
uma cama. Ela tinha sido estuprada ali mesmo por policiais municipais. Estava
atada há horas. Os cidadãos se enfureceram, capturamos quatro dos agentes e os
enchemos de porrada. Os demais escaparam”, lembra-se Saúl, um dos primeiros a
formar a Frente Cidadã. “Depois daquele evento, nos organizamos e decidimos
juntos termos regras mais rígidas. Apenas pessoas reconhecidas, honradas pela
comunidade, sem precedentes criminais e de confiança podem pertencer ao grupo
armado da polícia comunitária”.
A escuridão é total, mas, de repente, do banco do passageiro alguém acende a
brasa ardente de um cigarro.
Nos últimos dois anos, nasceram dezenas de grupos de autodefesa comunitária em
vários estados do México, em sua maioria defendendo bosques, mananciais,
fazendo oposição à violência dos grupos criminosos e à total ausência da
polícia, ou melhor, ao seu conluio com o crime organizado.
A mobilização armada de muitas comunidades se transformou em uma questão atual,
mas o primeiro grupo do tipo foi formado no estado de Guerrero em 1995, na
comunidade indígena de San Luis Acatlán, na região conhecida como Costa Chica.
Originalmente inspiradas pelo levante do Exército Zapatista de Liberação
Nacional, de 1 de janeiro de 1994, no estado vizinho de Chiapas, algumas
comunidades indígenas mixtecas e tlapanecas do município de San Luis se
organizaram para fazer oposição à violência e à ausência das instituições,
formando a CARC (Coordenadoria Regional das Autoridades Comunitárias). Durante
seus 17 anos de atividade, a CRAC se estabeleceu no território,
transformando-se na única força policial respeitada e considerada próxima dos
povos originários.
Para chegar a São Luis, coração da Coordenadoria, é necessário viajar por
quatro horas na estrada pela montanha, na Sierra de Guerrero, até quase a costa
pacífica, perto de Acapulco.
Nas ruas, a polícia comunitária é muito visível, mais semelhante a uma
instituição. As poli, como dizem por aqui, têm melhores armas, são mais
organizadas e especializadas. Representam a lei há vários anos, enquanto os
agentes da polícia municipal não fazem mais que organizar o trânsito em seus
poucos carros de serviço.
“Somos disciplinados e o povo nos respeita”, é o comentário de Leonel,
vice-comandante de um grupo permanente de polícia comunitário da CRAC. “A
comunidade nos nomeia e nos destitui. Prestamos contas à comunidade, mas,
sobretudo, somos parte dela.”
Antes de sair para fazer uma das rondas, Leonel passa para cumprimentar os
detentos do centro de justiça comunitária de San Luís. São seis homens
trancados em uma apertada cela. Durante o dia, os detentos têm a obrigação de
trabalhar a serviço da comunidade. Os familiares podem ir visitá-los a qualquer
momento. Para os que trabalham no campo, é comum que as mulheres que preparam
as refeições dos membros da polícia também ofereçam comida e bebida e eles. Três
vezes por semana os anciãos vão falar com os detentos: “São pessoas que
cometeram erros”, explica Leonel, depois de um breve diálogo com um deles.
“São membros da comunidade e devem sair da detenção melhores do que entraram. A
reeducação não é uma fórmula vazia aqui. É importante que quando eles saiam
sejam mais solidários, ativos e sensíveis.” Os membros da polícia comunitária
estão sujeitos a um castigo maior se cometem delitos. E as regras da CRAC são a
razão pela qual o governo mexicano ainda não eliminou esse movimento armado
que, de fato, em algumas regiões de Guerrero, substituiu a polícia oficial. Um
das regras mais rígidas é a proibição absoluta, nas comunidades que decidem
aderir à CRAC, do cultivo de maconha e de papoula. Para os camponeses é uma
decisão difícil, dado o alto rendimento econômico dessas plantas em comparação
ao coco ou ao café, mas a interferência dos cartéis da droga tem muitas
implicações.
“Nunca nos opusemos ao Estado”, explica Pablo Guzmán Hernández, um dos
fundadores da CRAC, “mas percebemos a ausência das instituições e a necessidade
de garantir a segurança das nossas comunidades”.
Víctor Martínez, professor de direito constitucional da Universidade
Tecnológica de Monterrey, acredita que a existência de qualquer grupo de polícia
comunitária represente uma ameaça à soberania do Estado: “Uma pessoa ou um
grupo da sociedade não confia mais nas instituições e decide assumir a defesa
de seus próprios interesses, de sua própria segurança, mas isso não tem base
jurídica. O Estado não pode permitir a autodefesa, para isso existem as
instituições. Para isso as autoridades foram criadas. A realidade dos fatos nos
diz que hoje qualquer um pode prender um delinquente, ou presumido delinquente,
sem se basear em regras compartilhadas. E isso é muito perigoso porque
facilmente pode se transformar em arbítrio”.
O risco de uma justiça sumária é muito alto e a CRAC fez o possível para não
ser acusada de subversão ou paramilitarismo ao longo dos 17 anos de sua
existência.
A contínua contradição entre a necessidade de autonomia e a reivindicação de
uma maior presença do Estado representa uma das características mais frequentes
entre as polícias comunitárias, mesmo que para os seus mais antigos militantes
a solução seja uma só: voltar às assembleias comunitárias, discutir, pensar
juntos estratégias de luta, possivelmente com o apoio da comunidade em seu
conjunto.
As rondas aumentam a cada dia, assim como o número de armas que chegam
ilegalmente a Guerrero. Durante uma assembleia no quartel general da CRAC, um
homem já idoso, um dos fundadores do movimento, que há tempos voltou a
trabalhar como agricultor, toma a palavra e quase chorando grita em um espanhol
incerto: “Nós não somos guerrilheiros, não somos bandidos.
Queremos nos sentir
seguros. Não queremos nos sentir fora da lei . Mas nos estão chutando para fora
dela. Na televisão, dizem que em Guerrero não acontece nada, que a situação é
tranquila. Mas então alguém precisa me explicar o que fazem aqui todos esses
soldados!”