quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

DESMITIFICANDO O "ELEMENTO DE EMPRESA" NA ATIVIDADE INTELECTUAL EXERCIDA PELO EMPRESÁRIO


De acordo com artigo 966, § único do CC, não se considerada empresário quem exerce profissão intelectual de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

O citado dispositivo legal exclui, portanto, do conceito de empresário aqueles que têm no exercício de atividade intelectual, sua profissão. É o caso dos médicos, dentistas, escritores, escultores, que mesmo exercendo suas profissões de natureza científica, literária ou artística com profissionalismo e de forma organizada, não serão considerados empresários.

Conforme Alfredo de Assis Gonçalves Neto (Direito de Empresa. RT, 2010, p. 74), não é empresário quem exerce atividade intelectual por qualquer meio, organizadamente ou não, em caráter profissional ou não, qualquer que seja o volume, intensidade ou quantidade de sua produção. Neste sentido mesmo sentido, estabelece o Enunciado 193 da III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho Federal de Justiça, que “o exercício de atividade de natureza exclusivamente intelectual está excluído do conceito de empresa”.

Portanto, a atividade intelectual, ainda que econômica e exercida profissionalmente e de forma organizada, não será considerada uma atividade própria de empresário, não sujeitando o profissional que a exerce ao regime jurídico do Direito Empresarial.

Neste contexto, as profissões intelectuais se distinguem da profissão de empresário devido a uma diversa valoração social. Em outras palavras, o acesso à profissão não é livre, como ocorre com a atividade empresarial, dependendo de formação intelectual muito mais severa e da inscrição do profissional na respectiva corporação; no exercício da profissão intelectual imperam premissas de decoro que impedem, por exemplo, a livre concorrência; e não existe no exercício de uma profissão intelectual a produção em massa, característica da atividade empresarial.

Ocorre, entretanto, que o citado dispositivo contém em sua parte final uma exceção. Trata-se do elemento de empresa. Assim, se o exercício da profissão intelectual constituir elemento de empresa, o sujeito que a exerce será considerado empresário.

A exceção contida na parte final do parágrafo único do Artigo 966 do Código Civil, tem gerado certa controvérsia na doutrina que, muitas vezes, associa o elemento de empresa à pessoalidade no exercício da profissão intelectual, ou mesmo àorganização da estrutura necessária para a exploração da atividade. Não me parecem, contudo, acertadas essas opiniões.

Ora, se o elemento de empresa consistisse no exercício da atividade intelectual organizada com profissionalismo e finalidade econômica, o disposto no artigo 966,parágrafo único do Código Civil se faria letra morta, dada a sua absoluta redundância. Isso porque se a atividade intelectual não fosse assim explorada, já estaria excluída do conceito de empresário pela redação do próprio caput do citado artigo.

Talvez a razão da dificuldade na interpretação e conceituação do “elemento de empresa” esteja no fato de que, muito embora tenha sido inspirado no artigo 2.238[1]do Código Civil Italiano, sua versão para o nosso Código Civil sofreu uma supressão que pode ser a causa de sua equivocada interpretação por parte da doutrina. Neste sentido, tinha dado ao parágrafo único do artigo 966 (então artigo 1.027 do Projeto doCódigo Civil), redação muito parecida com a utilizada pelo Código Civil Italiano: “salvo se o exercício da profissão constituir elemento de atividade organizada em empresa”. No entanto, ao ser aprovado pela Câmara dos Deputados, sofreu uma simplificação com a supressão das palavras “atividade organizada em”, tornando-o mais lacônico e permitindo interpretações que não coadunam com a proposta do citado dispositivo legal.

No Código Civil Italiano, o trabalhador autônomo é disciplinado em capítulo distinto (Capo II – Delle professioni intellettuali) daquele que trata do empresário comercial (Capo I – Dell’impresa in generale), não sendo, portanto, submetido ao regime jurídico do empresário. O Capítulo II do Livro V do Código Civil Italiano disciplina o trabalho autônomo, ou seja, as profissões intelectuais, dispondo de forma detalhada sobre a atuação do profissional, suas relações com o cliente e suas responsabilidades. No entanto, nos termos do citado artigo 2.238, se o exercício da profissão constituir elemento de uma atividade organizada em forma de empresa, serão também aplicáveis as normas relativas a esta.

Conforme Alfredo de Assis Gonçalves Neto (ob. cit., p. 75), a profissão intelectual, no sistema italiano, não tem qualquer vinculação com a matéria relativa à empresa; se ela, entretanto, for exercida como parte de uma atividade empresarial, continuará subornada às regras do capítulo que lhe é próprio, sendo-lhe aplicáveis, então, complementarmente, as disposições referentes à empresa.

Para Francesco Galgano (Diritto commerciale – L’imprenditore. Zanichelli, 1986, p. 31), as normas sobre empresa não se aplicam, porém, aos bens organizados pelo profissional intelectual para o exercício de sua profissão. Mesmo quando os escritórios profissionais apresentam, sob muitos aspectos, semelhanças com a empresa; mesmo que, na prática, essas semelhanças tendam a se ascentuar, na medida em que cresce o espírito mercantil de muitos profissionais intelectuais, e os conceitos de “aviamento”, de “clientela”, de “cessão” do escritório profissional e de “preço de cessão” sejam frequentemente utilizados mesmo nesse campo, resta, porém o fato de que os profissionais intelectuais não são, pelo nosso código civil, empresários e que sua atividade profissional não é legislativamente qualificada como atividade de empresa”.

Na mesma linha, Tulio Ascarelli (Corso di Diritto Commerciale. Giuffrè Editore, 1962, pp. 161-185) adverte que a classificação legal dos que exercem profissões intelectuais entre os trabalhadores autônomos induz, frequentemente, a reconhecer na falta de organização a razão da sua exclusão do âmbito dos empresários. Isto, todavia, me parece em contraste com o artigo 2.238, primeiro parágrafo, que faz referência à aplicação das normas em tema de empresa só quando o exercício da profissão constitua “elemento de uma atividade organizada em forma de empresa”;trata-se, portanto, de uma hipótese distinta daquela da contratação de pessoal e, assim, da objetiva existência de uma organização, que pode até ser relevante e importar em uma certa “despersonalização”, perante a qual podem, na verdade, também propor-se problemas não distantes daqueles que se propõem com relação aos empresários. Não é, pois, uma pretensa constante falta de organização que leva a excluir os que exercem profissões intelectuais do âmbito dos empresários.

Portanto, ao contrário do que muitos “pretensos” doutrinadores e professores afirmam, o elemento de empresa não tem qualquer relação com a organização ou não da atividade intelectual, com o seu exercício ou não de forma profissional, com o número de empregados contratados ou mesmo o seu faturamento. Ser a profissão intelectual “elemento de atividade organizada em empresa”, ou simplesmente, “elemento de empresa”, significa ser parcela dessa atividade e não a atividade em si, isoladamente considerada. É o caso, por exemplo, do médico que agrega a prática da medicina um “SPA”, onde ao paciente se oferece repouso e alimentação; do veterinário que, além do seu oficio, em uma pet shop vende ração para os animais, medicamentos, bem como hospeda os animais na viagem de seus donos.

[1] Art. 2.238. Se l'esercizio della professione costituisce elemento di un'attività organizzata in forma d'impresa, si applicano anche le disposizioni del Titolo II (2082 e seguenti).

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