Alguns evangélicos detestaram minhas explanações em um
artigo que publiquei sobre os “pecados” históricos
e teológicos do protestantismo. Meu amigo Julio Severo, blogueiro de confissão
protestante e militante cristão pró-vida, postou uma resposta em sua página,
que é cheia de equívocos históricos. Na verdade, suas declarações apenas
revelaram aquilo que critiquei no imaginário protestante. A idéia errônea de
uma Igreja Católica irremediavelmente corrupta e de uma “Reforma” moralizadora
e salvadora da Cristandade. Até o dado momento, não vi nenhuma refutação
realmente convincente.
O protestantismo do século XVI ameaçou destruir todas
as bases culturais e históricas do Catolicismo na Europa. Em nome dos erros da
Sola Scriptura e de outras idiossincrasias teológicas, queria apagar da memória
cerca de quase mil e quinhentos anos de Cristianismo. Ou na melhor das
hipóteses, reescrever essa tradição e essa história conforme as conveniências
de cada seita ou grupo político apologista do cisma reformado. De fato, esse
apagão cultural ocorreu dentro da cultura protestante. Monarcas como Henrique
VIII saquearam os mosteiros e templos católicos, expulsando ou executando
monges e padres e obrigando toda a uma população a aderir à sua nascente igreja
particular. Na Alemanha foi até pior. Igrejas foram queimadas, obras de arte
foram destruídas e os católicos foram obrigados à conversão forçada ou
assassinados. A Alemanha foi um verdadeiro palco de guerra civil e religiosa.
Até aqui falei de história. De fatos. Como católico,
naturalmente que sempre me chamou a atenção para essa lendária calúnia contra a
Igreja Católica. O peso histórico dessas calúnias foi tão estrondoso que fez
até o Papa João Paulo II declarar um mea-culpa inconveniente, já que o fez
baseado em uma perspectiva enviesada. O Santo Padre pediu desculpas por boa fé.
Porém, suas declarações acabam por legitimar meias verdades históricas. Os
católicos da atualidade são bombardeados por um nível tal de estigma social,
que ficam simplesmente desarmados e sem resposta, por ignorância.
Voltemos aos protestantes. Obviamente que a Igreja do
século XVI não era exemplar. Estava acometida pelas corruptas famílias nobres
da Itália e também era alvo de disputas pelos poderes seculares da Europa. A
depravação do clero era algo que não poderia ser ignorado. Contudo, o problema
central é vender a idéia de que o protestantismo significava uma oposição a
isso. Eis a questão. O protestantismo representou a mais completa rebelião do
poder secular contra o poder espiritual. Na verdade, a Reforma não foi uma mera
consequência da corrupção da Igreja Católica. A rebelião protestante é parte e
consequência dessa corrupção. A decadência do clero católico apenas serviu de
pretexto.
Muitos ficaram ofendidos quando associei o protestantismo
ao catarismo, heresia gnóstica do século XII, em Albi, na França e demais
regiões da Itália e no norte da Espanha. Pois bem, se atentarmos aos
anabatistas e aos rebeldes fanáticos luteranos de Thomas Müntzer ou mesmo da
tirania religiosa de Münster, houve aberrações horripilantes de seitas
milenaristas que pregavam a destruição da ordem vigente e a instituição de
utopias sociais. Em muitos aspectos lembram as utopias totalitárias do século
XX.
Friedrich Engels escreveu um artigo sobre a Reforma,
onde fazia a objeção dialética entre Lutero e Müntzer. O primeiro, embora
rebelado contra Roma, representava a situação encabeçada pelos príncipes
protestantes alemães. Müntzer seria uma espécie de “teólogo da libertação” ou
da “Missão Integral” do século XVI. Pregava a abolição da propriedade, a
rejeição á autoridade e o estabelecimento de um regime comunista de bens.
Insuflou uma violenta rebelião camponesa, que foi esmagada com incrível
crueldade.
Entretanto, há um erro na análise de Engels, preso aos
esquemas mentais do materialismo histórico. Lutero também era revolucionário. A
diferença é que não era totalmente um utopista. Há quem diga que o monge
agostiniano foi o pai do nacionalismo alemão. De fato, ele significou a ruptura
da ordem internacional cristã da Idade Média, para o surgimento dos Estados
nacionais e do absolutismo monárquico. Naturalmente que Lutero não foi o único
gerador do processo. Outros fatos coexistiram com ele. Todavia, sua doutrina
política deu força suficiente para que os príncipes rebeldes da Europa usassem
as armas teológicas contra a Igreja Católica.
Pensemos aqui numa outra hipótese: se o protestantismo
conquistasse toda a Europa, incluso Portugal, Itália e Espanha e destruísse a
fé católica, qual seria o futuro do Cristianismo? Com certeza o prejuízo seria
terrível. A história cristã tradicional seria apagada para se impor uma nova e
fictícia ordem religiosa, embasada em erros históricos e teológicos.
Qualquer igreja ou seita evangélica ou “reformada”
praticamente reescreveu toda a história do mundo antigo e medieval, em
particular, sobre as origens da Igreja cristã, riscando o legado católico do
mapa. Embora as historietas sobre uma suposta “Idade das Trevas” tenha surgido
na prepotência do humanismo renascentista europeu, a militância protestante
absorveu profundamente esse mito e a entronizou na sua propaganda anticatólica.
A tônica central da historiografia protestante já se tornou um padrão de
pensamento: havia uma idealizada “Igreja primitiva” que guardava as Escrituras
como se fosse uma espécie de código penal. Essa “igreja” foi corrompida quando
o Imperador Constantino “criou” a Igreja Católica e destruiu a espiritualidade
dos primeiros cristãos. E do final do Império Romano até a Reforma, a Igreja
viveu seu período de trevas, paganismo, corrupção e tirania dos papas e do
clero romano, “escondendo” a bíblia do povo e contrapondo a sua “tradição”
humana com as Escrituras. Lutero e Calvino vieram “salvar” a igreja verdadeira
do engodo romano buscando a “palavra de Deus”. Qual católico ignorante não se
converteria ao protestantismo depois dessa ladainha? A historiografia
apologética protestante encontrada em qualquer livro parte uma teologia errônea
para sustentar uma falsa história.
Uma das mais significativas lendas negras da
historiografia protestante é basicamente sobre a Inquisição. Criou-se toda uma
sorte de desinformações a respeito dessa instituição abominada pela
posteridade. A lenda nasce, em parte, por conta das guerras entre a Espanha
católica e as nações “reformadas” da Holanda e Inglaterra. A Espanha era o país
mais poderoso, rico e culturalmente sofisticado da Europa. Era um gigantesco
império, que envolvia a América do Sul, central e do norte, parte da Itália,
parte da atual Bélgica e Holanda, além de algumas regiões da Alemanha. E um
verdadeiro bastião militar da fé católica da Contra-Reforma. Se os protestantes
não conseguiam derrotar os tércios e as armadas dos Áustrias espanhóis, ou
seja, Carlos V e Felipe II, eles seriam derrotados pela propaganda. Dito e
feito.
Os supostos horrores atribuídos à inquisição, com suas
torturas abomináveis e sadismo dos inquisidores, são mitos cada vez mais
desmistificados por historiadores sérios. Na verdade, a inquisição foi a
primeira instituição europeia a limitar o uso da tortura para fins de
confissão. Recordemos que a tortura era um método comum do tribunal criminal
secular. Segundo estudiosos como Henry Kamen, a tortura era raramente empregada
e havia restrições para seu uso.
Vende-se a ideia comum de que a Inquisição Espanhola
foi uma instituição que impunha o terror e o medo generalizados nas populações
católicas e também protestantes e esterilizou a cultura ibérica. Nada mais
falso. A sociedade espanhola aceitava a inquisição como instituição legítima e
defensora da ortodoxia. Recordemos que o ápice da Inquisição espanhola foi
também o auge da cultura espanhola, o Siglo de Oro, onde uma penca
de escritores, moralistas, teólogos, juristas, místicos, poetas e músicos
brilhou por todo o século de Felipe II.
A inquisição espanhola não era feita de fanáticos
ensandecidos por sadismo e violência. Era formada por homens eruditos e
juristas de Salamanca, gente educada e letrada. No inicio do século XVI,
cardeais inquisidores como Ximenes eram humanistas e admiradores de livros com
os de Erasmo de Roterdã. Até Torquemada, um dos mais duros inquisidores, embora
não o pior, era um homem de letras.
Foi a inquisição espanhola, contrariando toda uma
tendência histérica e delirante do direito criminal europeu, que decretou, no
início do século XVII, a inexistência do crime de bruxaria. Para o Consejo
de la General y Suprema Inquisición, órgão maior da instituição em Madrid,
a bruxaria não passava de superstição, difícil de ser comprovada, estimulada
por pessoas loucas ou problemáticas. A lógica inquisitorial era muito simples:
como juristas, queriam provas. Como não havia provas, não haveria também como
afirmá-las de sua existência. Ademais, é comum brandir o espantalho contra a
bruxaria, ao citar obras como o Malleus Maleficarum dos dominicanos Kraemer e
Sprenger ou o Manual da Inquisição, de Nicolaus Eymerich. Contudo, a inquisição
espanhola rejeitou esses livros e, inclusive, em alguns casos, chegou a
proibi-los.
Esse é um dado importante, pois a historiografia
protestante finge ignorar a existência de sua própria inquisição. A caça às
bruxas no século XVII foi um fenômeno mais protestante do que católico.
Milhares de mulheres “bruxas” foram queimadas na Alemanha, Suíça, Inglaterra,
Suécia, Dinamarca e demais países “reformados”. Até hoje há seitas protestantes
que vêem bruxas pra tudo quanto é lado.
Outra grande lenda que leio no blog de Julio Severo é
a de que a inquisição matou milhares de pessoas em toda a Europa. Nem todos os
países católicos tinham uma “inquisição”. Com exceção de Portugal, Espanha e
algumas regiões da Itália, os procedimentos para os crimes de heresia
pertenciam ao poder secular. Quanto mais se aprofunda a pesquisa sobre o
assunto, descobre-se que o número de pessoas entregues ao braço secular pelo
sistema inquisitorial foi ínfimo. Em Portugal, ao menos, segundo Anita
Nowinski, foram cerca de 1700 pessoas em dois séculos, embora esses números
sejam francamente exagerados. Na Espanha, acreditava-se que o máximo seria
10000 a 20000 pessoas em quatro séculos. Hoje, há dados que diminuem ainda mais
esses números. De acordo com o historiador Agostino Borromeo, junto com o
Simpósio Internacional sobre a Inquisição, realizado no Vaticano, em 1998, de
1540 a 1700, apenas 800 pessoas foram entregues ao braço secular. Numa ordem de
44 mil processos, apenas 2% dos acusados foram executados. As mortes atribuídas
à inquisição em séculos são menores do que uma tarde de verão de qualquer
ditadura do século XX. São menores, inclusive, do que as perseguições
praticadas pelos próprios protestantes.
É necessário observar um mero detalhe: o mal daqueles
que criticam a Inquisição é o de falhar pelo contexto histórico. Os valores
religiosos tinham uma importância crucial, tanto nas sociedades católicas, como
nas protestantes. A heresia, como a dissidência religiosa, era considerada uma
grave ameaça à ordem social. O conceito de “liberdade religiosa” era
completamente estranho ao homem europeu do século XVI. Nem Lutero e Calvino
pregavam essa idéia. O “livre exame” era “livre” dentro dos preceitos
protestantes. Cada religião tinha sua forma de manutenção da ordem social. Era
um fator de unidade e de identidade e de preservação da ordem.
Julio Severo fala da perseguição da Inquisição aos
judeus como se fosse uma realidade, quando na prática, ficou restrita a um caso
particular em Portugal e Espanha. Cabe acrescentar que a inquisição não tinha
jurisdição sobre os judeus. Nos Estados papais italianos havia uma comunidade
judaica onde os judeus poderiam viver sua religião sem serem incomodados. Na
República de Veneza era a mesma coisa. E por quê? Pelo simples fato de que a
Inquisição só julgava pessoas batizadas no catolicismo. Os judeus espanhóis e
portugueses julgados pela Inquisição tinham batismo católico e eram
considerados como tais. O batismo implicava a aceitação das regras, valores e
preceitos religiosos da comunidade católica. E a partir dessas leis que os
heréticos ou apóstatas eram inquiridos pelo tribunal eclesiástico.
Julio Severo também diz que a punição contra a
dissidência religiosa é algo que contraria o Evangelho. De fato, no Evangelho
não há prescrições impositivas contra dissidentes religiosos. Todavia, no
Antigo Testamento, o que não faltam são prescrições contra blasfêmias ou
práticas pagãs entre os judeus, cuja pena era a morte. Aliás, recordemos que os
judeus da Diáspora viviam essas regras severas. Na “tolerante” Holanda do
século XVII, a comunidade judaica excomungou Uriel da Costa e Baruch de
Spinoza, acusados de ateísmo. Os argumentos protestantes para queimar bruxar na
Europa também se embasavam na interpretação literal do Antigo Testamento.
É verdade que a Inquisição católica cometeu muitas
injustiças. Todavia, os “heterodoxos”, nas palavras do historiador espanhol
Menéndez y Pelayo, não eram totalmente sacrossantos. Muitas heresias
catalogadas na Espanha do século XVI, XVII e XVIII eram manifestações de
loucuras coletivas que seriam punidas por qualquer sistema penal vigente. A
onda de “dejados”, “alumbrados” outros tipos lunáticos que insuflavam uma massa
fanatizada pelas palavras do louco herético, causava uma comoção social e uma
desordem tal, que poderiam romper os laços de paz social. A extrema ferocidade
com que a Espanha combateu a heresia protestante evitou que o país entrasse no
campo da guerra civil européia, por conta das dissidências religiosas.
Aliás, um fator interessante dos tribunais
protestantes é a sua interpretação literal e sectária da bíblia, tornando
sociedades e reinos em verdadeiras tiranias teocráticas. Com exceção da
Inglaterra e Holanda, a linha do legalismo bíblico ganhou ares sectários de
lei. Genebra foi um exemplo clássico disso. Por essa razão é que os tribunais
protestantes foram tão impiedosos. A carência de distinção entre o secular e o
religioso tornava o Estado implacável. A inquisição católica parece branda
perto das perseguições protestantes. E lembremos que essas perseguições não se
limitavam aos católicos. Protestantes também perseguiam protestantes.
Anglicanos, luteranos, puritanos, anabatistas e outros se matavam entre si.
Os Estados Unidos, tão idolatrados por Julio Severo,
nasceram da perseguição religiosa protestante contra outra seita protestante. E
neste ponto, o meu amigo evangélico sustenta outro mito, que já tinha
identificado no texto anterior: a supremacia do protestantismo como sociedade
política, em detrimento da sociedade católica. Ele cria uma fantasiosa relação
de tolerância entre calvinistas holandeses no nordeste do Brasil no século
XVII, nas seguintes palavras:
“Ora, preciso
fazer algumas ponderações aqui. O Brasil é o país mais católico do mundo. A
primeira grande presença protestante no Brasil foi nos idos de 1600, com a
ocupação holandesa no Nordeste. Os protestantes holandeses vieram e trouxeram
artistas, arquitetos, engenheiros, pastores, etc. Sob o comando do Conde
Maurício de Nassau, eles construíram teatros, pontes e outras magníficas
edificações que duram até hoje, depois de vários séculos. Mas ao contrário do
resto do Brasil, onde tanto protestantes quanto judeus não tinham a mínima
chance de escapar das torturas e fogueiras “santas” da Inquisição, no Nordeste
holandês havia liberdade religiosa. Você tinha liberdade de ser católico,
protestante ou judeu. Aliás, muitos judeus vieram da Europa para viver no
Brasil holandês. A primeira tradução completa da Bíblia para o português foi
feita por João Ferreira de Almeida, sob patrocínio holandês”.
Se o mito da prosperidade soa bonito na propaganda
protestante, o mesmo se fala dos holandeses, em detrimento dos portugueses. É
bem verdade que Mauricio de Nassau era um homem pragmático e um grande político
patrocinador das artes e da cultura. Todavia, esse reino de “tolerância” não
escondia o radicalismo dos calvinistas holandeses, que odiavam profundamente os
católicos ibéricos, incluso, os brasileiros. A coexistência pacífica,
aparentemente realista, não escamoteava o desprezo mútuo entre os calvinistas,
os católicos e os judeus. Ademais, Julio Severo faz uma confusão entre
“liberdade religiosa” e “tolerância religiosa”. Os calvinistas holandeses
poderiam tolerar a diferença religiosa, mas não a dissidência interna. Bastou
que a Companhia das Índias Ocidentais pressionasse os senhores de engenho
através de dívidas impagáveis, para que os católicos se reunissem em armas a
expulsar os holandeses.
Ademais, Julio Severo se engana ao crer que a primeira
tradução da bíblia em português é do calvinista João Ferreira de Almeida.
Talvez ela seja a mais famosa e mais aprofundada. Mas a tradução da bíblia para
o português já existia desde o século XIII, na época do Rei Dom Dinis e dos
monges do mosteiro de Alcobaça. A relativa desconfiança da Igreja com relação à
tradução da bíblia em vernáculo tinha menos a ver com elementos conspiratórios
do que de evitar a disseminação de heresias e interpretações errôneas dos
textos bíblicos.
Julio Severo interpreta erroneamente a história e
acaba por idealizar algo irreal:
“O Nordeste do Brasil muito perdeu
por amor à Inquisição católica. Perdeu uma cultura de tolerância e respeito e
ficou com uma cultura de trevas, inquisição e morte”.
A Inquisição Católica teve pouca
relevância no Brasil. Julio Severo cria uma falsa associação entre Igreja e
Inquisição, como se fossem elementos essenciais e institucionais. Há outro
problema: por que os católicos ibéricos da América aceitariam se sujeitar a
políticos protestantes visivelmente hostis à sua religião e que só acataram a
tolerância por questões puras de pragmatismo? É preciso recordar dos massacres
praticados por holandeses contra os católicos no Brasil, em particular, os de
Uriaçu e Cunhaú, em 1645. É preciso também recordar que os holandeses tomaram o
nordeste através das armas. Eram inimigos de Portugal e da Igreja Católica.
Falou-se aqui em tolerância e
prosperidade. Os países protestantes vendem a idéia de que são tolerantes em
matéria de religião. É verdade que começaram a discutir sobre a “tolerância” no
século XVII. Contudo, isso se deveu menos a uma mera liberalidade espiritual do
que uma solução civil e política para acabar com as matanças, guerras civis e
hostilidades religiosas causadas por eles mesmos. A Inglaterra caiu numa guerra
civil entre puritanos e anglicanos, entre o parlamento puritano e os anglicanos
alinhados com o rei. A Alemanha foi o palco da guerra dos trinta anos. E a
França, embora católica, caiu numa selvagem guerra civil no século XVI.
A discussão sobre a “tolerância”,
embora mais antiga, ressurge deste contexto. Mas essa “tolerância” era também
restrita. Na Inglaterra do século XVII, em particular, na Revolução Gloriosa,
os protestantes se toleravam entre si, mas desprezavam os católicos e
restringiam ao máximo suas liberdades civis e políticas. Na Irlanda, os
ingleses tratavam os católicos como abaixo de animais. Alguém poderia afirmar
que a aceitação de católicos nas instituições inglesas poderia ameaçar a volta
do catolicismo como religião oficial. Mas a recíproca não era verdadeira nos
países católicos com relação aos protestantes? Os protestantes também não
queria impor sua hegemonia e seu poder em detrimento dos católicos?
Julio Severo ataca-me, quando declaro
o perigo da ameaça protestante sobre as “bases civilizacionais católicas” do
Brasil. Inclusive, atribui aos católicos à pretensa “apostasia” religiosa dos
Eua:
“O perfil cristão dos EUA hoje é radicalmente
diferente do que era duzentos anos atrás. Na elaboração da exemplar
constituição americana no século XVIII, dos 55 constituintes, havia apenas 3
deístas e 2 católicos. Todos os outros eram evangélicos. A liberdade que os
católicos tiveram foi notável, pois na mesma época os protestantes do Brasil —
se é que havia — não teriam liberdade nem de dizer quem eram, muito menos
participar da elaboração de uma constituição.
A diferença entre as bases “civilizacionais católicas”
do Brasil e o protestantismo tolerante dos EUA era a diferença entre trevas e
luz cultural, liberdade e escravidão cultural. Ser católico na América
protestante do século XVIII era a prova da cultura tolerante dos EUA. Ser
protestante no Brasil católico do século XVIII era risco certeiro de vida.
A apostasia que os EUA enfrentam hoje, com o
coincidente aumento dos imigrantes católicos latino-americanos, ocorre por
estarem rejeitando o Cristianismo de vertente protestante, com seus rígidos
valores éticos, que tornou sua nação grande e poderosa”.
Meu amigo Julio Severo apela a um sofisma para
atribuir a decadência dos Estados Unidos aos católicos latino-americanos.
Aliás, é comum aos elementos brancos, anglo-saxônicos e protestantes atribuírem
à quebra da harmonia cultural e religiosa norte-americana a outros povos
inseridos em sua comunidade. Nada mais falso e artificioso. A decadência das
instituições norte-americanas se deve às fortes influências maçônicas e
relativistas da gênese do próprio protestantismo da sociedade americana. E ela
não começa com os imigrantes católicos, mas com a concepção filosófica do
pragmatismo político sem raízes metafísicas e morais sólidas. Em outras
palavras, são as elites americanas, desde sempre, que causam a própria
decadência. E isso pode incluir uma parte da intelligentsia judaico-americana,
afeita ao esquerdismo militante.
Os católicos latino-americanos não têm a menor
influência política nos Eua. Aliás, Julio Severo omite outros dados: os rígidos
valores protestantes, em particular, os calvinistas, criaram uma sociedade
racista e discriminatória contra negros e índios. Uma sociedade que
discriminava católicos e outros tipos de povos considerados não-nórdicos ou
não-protestantes. As toneladas de inverdades que a cultura protestante
americana criou sobre a Igreja Católica são assustadoras. O nível de mentiras
chega a ser patológico. São essas falsidades que se repetem à exaustão
nas escolas dominicais de qualquer igreja protestante. O ódio a Igreja Católica
é dos mais caros dogmas protestantes.
Foi a partir do protestantismo que a cultura
politicamente correta teve uma sólida força, já que os americanos estavam
acostumados em mesclar os conceitos bíblicos literais de cada seita com os
códigos pessoais de conduta. Daí o legalismo soberbo na vida privada alheia. O
que ameniza a cultura pessimista do calvinismo nos EUA são as outras
influências, em particular, deístas e maçônicas, embora estas também tenham um
forte fervor relativista e potencialmente revolucionário.
Entretanto, Julio Severo me chama de “inquisidor”,
pelo único defeito de criticar a essência teológica e política do
protestantismo:
“No Brasil, que de acordo com o
colunista do Mídia Sem Máscara está perdendo as “bases civilizacionais
católicas,” o que aconteceria se “limpassem” a nação brasileira dos homens,
mulheres e crianças que ele chama de “cátaros” modernos? Há uma grande maioria
católica no Congresso Nacional, mas a principal resistência ao aborto e à
agenda gay ali é católica? Não. É a Frente Parlamentar Evangélica. Que tal um
Brasil sem essa resistência?”
Eu nunca preguei assassinato,
perseguições ou matanças de evangélicos. Pelo contrário, em vários aspectos
comuns sou aliado deles. Não tenho a menor pretensão pela volta da Inquisição
ou de qualquer outra instituição policiando ortodoxias. Mas é tremendamente
verdadeiro que o protestantismo sofre de uma síndrome de catarismo, de obsessão
pela “pureza”, com enorme semelhança entre os cátaros medievais. Recordemos que
a bancada evangélica, embora faça um trabalho excelente de resistência cultural,
apoiou o governo federal.
Aliás, por que será que os
protestantes estão escandalizados com minhas observações? Eles ganham espaço
pelo mesmo imaginário faccioso que repetem dos católicos. O mito da Reforma
protestante, o mito da inquisição, o mito do “atraso” católico, dentre outros,
é pregado à exaustão como “verdades”, quando na prática são mistificações.
Mistificações estas apenas confirmadas pelas palavras de meu querido amigo
Julio Severo.
Eu fiz uma pergunta em meu texto onde
respondi apenas superficialmente: o que seria dos protestantes sem os
católicos? A negação radical da Tradição, dos legados da Igreja medieval e
mesmo da teologia cristã durante séculos seria a castração do Cristianismo, a
destruição de suas origens. Até as origens do Evangelho seriam apagadas.
Percebe-se que essa castração já
nasce com a Sola Scriptura. Mas “sola scriptura” baseado em que? Em que
história? Aquela inventada pelos protestantes, que ora chamam a Santa Madre
Igreja de “intolerante” e “corrupta”, ao mesmo tempo em que essa mesma Igreja
caluniada guardou fiel e honestamente a bíblia? Para ser protestante é preciso
apagar a história. É preciso passar uma borracha na tradição. É preciso seguir
uma opinião pessoal em desfavor de toda uma Tradição apostólica que foi
repassada diretamente de Jesus Cristo, para ser reduzida às tendências
caprichosas dos luteranos, calvinistas, anabatistas e milhares e milhares,
senão milhões de seitas que mal se entendem entre si e se julgam a “igreja de
Jesus”. Nem os cristãos gregos, cujo cisma gerou a primeira ruptura da Igreja
em 1054, conseguiram ser tão odiosos contra a Tradição.
Nós, católicos, representamos a
preservação de um passado civilizacional que se quer destruir. Será que o
protestantismo possui a força civilizacional da Igreja Católica? Será que os
norte-americanos representam, atualmente, alguma força neste sentido? Acredito
que não.
Se o protestantismo aceita o
liberalismo teológico, por que não aceitaria outras formas de liberalismos? Não
é curioso notar que o ateísmo cresce absurdamente nos países protestantes,
justamente porque o protestantismo é a primeira etapa do secularismo? Na
Europa, as igrejas reformadas aceitam casamento e padres homossexuais e admitem
quaisquer tipos de aberrações morais em nome de certas conveniências
politicamente corretas. A legalização do aborto é uma vitória de pais
protestante espalhado em países católicos. A apostasia é muito mais grave no
protestantismo do que no catolicismo. A Igreja Católica pode ter padres, bispos
e até papas ruins. Mas somos escravos de uma Tradição que não podemos mudar
substancialmente. Essa Tradição, junto com a Sagrada Escritura e o Magistério,
é a bussola do católico. A Igreja está nestes pilares.
Por que tanto ódio contra a Igreja
Católica? Alguém tem dúvida de que se ela decair totalmente, a civilização
ocidental vai junto para o ralo? A crise moral brasileira também é a crise
moral do catolicismo. Nem as seitas protestantes são capazes de compensar essa
lacuna. Por uma razão simples: o protestantismo é teologicamente fraco e suas
bases culturais e religiosas são inconsistentes. A própria civilização
europeia depende de suas origens católicas.
É por esse motivo que a Igreja
Católica tem tantos detratores e inimigos. O ódio protestante pelo catolicismo
é paradoxalmente o mesmo compartilhado por segmentos ateus, secularistas,
iluministas, marxistas e outros. Eles podem ser aparentemente distintos nas
idéias, mas possuem alguns elementos em comum. A Igreja Católica representa a
tradição que teima em resistir. Ainda que o clero não saiba representá-la,
ainda que até o papa cometa falhas, ainda que muitos católicos a ignorem, a sua
sobrevivência perante os séculos deve ser uma dádiva sobrenatural.
Osvaldo Aires Bade
Comentários Bem Roubados na "Socialização" - Estou entre os 80
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Esse texto é uma resposta para esse:
A INQUISIÇÃO, O PAPA E O SUSPIRO DE ALGUNS CATÓLICOS “CONSERVADORES” (aqui)
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