sábado, 9 de junho de 2012

Os vieses da Vingança



Fonte: Portal Ciência & Vida - Revista Filosofia




Alguns filósofos a encaram como um reparo desejável contra a injustiça, outros como desnecessária por abalar a tranquilidade de quem a persegue. Apesar de opostas, as duas visões concordam em um ponto: a vingança interfere em nossas possibilidades de ser feliz

Por Arthur Meucci





Arthur Meucci é graduado e pós-graduado em Filosofia pela USP, membro da Associação Filosófica Scientiae Studio e do Grupo de Estudos de Filosofia da Comunicação (ECA/USP). É professor de Filosofia e consultor do Espaço Ética. arthur@espacoetica.com.br

Pensar sobre a vida que vale a pena se viver é uma reflexão filosófica importante e árdua. Afinal, o que seria mais essencial do que pensar sobre a vida que se vive ou da que se pretende viver? O que seria mais urgente do que pensar em nossa própria felicidade?
Há muitas propostas e discussões na Filosofia sobre este assunto. Um deles é a vingança. Mas a vingança não é um tema muito agradável. Também não parece ter muita relação com a felicidade. Quem já não quis se vingar ou já se vingou de alguém antes? Quem nunca passou pela vida sendo injustamente lesado e quis dar o troco?
Constatamos, então, a importância deste tema para se viver bem. Felizmente, a vingança, ao contrário do amor e da amizade, pode ser passageira e ocasional. Porém, quando o sentimento surge, é capaz de mudar nossas vidas. Na maioria das vezes, para pior. Por isso, tantos pensadores refletiram sobre este tema. E nós aqui faremos o mesmo.




Jabhal e Leydianni
Embalado nos enredos de sucessos dramáticos não hollywoodyanos, a fictícia história de Jabhal e Leydianni servirá de ilustração para nos guiar pelo pensamento de Aristóteles sobre a justiça e a vingança. Jabhal Matsubara, típico morador da Móoca, conheceu uma jovem, Leydianni Jabirosca, nas aulas de Ética em uma universidade paulistana. Eles passaram a trocar olhares, sorrisos, gracejos. Ao relatarem sobre suas vidas, Leydianni se disse noiva, para tristeza de nosso herói. Ele desiste de estreitar relações, porém, aos poucos, ela se aproxima com segundas intenções. Dentre outras coisas, pedia ajuda em seus trabalhos acadêmicos. Disse que estava com dificuldades para estudar por causa de seu noivo, relatado como uma criança mimada e egoísta, o que gerou no rapaz um misto de constrangimento e compaixão.
Em A escola de Atenas, de Rafael, Aristóteles caminha com a Ética nas mãos. O filósofo grego defende que a injustiça deve ser punida e que tal postura é própria do homem virtuoso


Leydianni o provocava de diversas formas e ele, sem muita questão de resistir, se aproveitava. Entrou no jogo da sedução. Quando Jabhal, preocupado, questionava sobre seu comportamento ela pedia desculpas e dizia estar insegura como mulher por causa de seu relacionamento. Para se justificar, contou que sua futura sogra saía semanalmente do interior de Salto para limpar a casa de seu noivo e a condena pela falta de higiene do lugar. A mãe dele fazia questão de comprar e fiscalizar coisas simples, como a água que eles bebiam, por exemplo. No meio do semestre, ela aparece chorando. Deitou-se no colo de Jabhal e contou que sua sogra ficava falando das qualidades da ex-namorada de seu noivo. Ao reclamar com ele sobre tal atitude, ele acabou mostrando-se indiferente. Ela dizia que, em suas noites, sofria com a frigidez sexual de seu parceiro, que não a satisfazia e que, muitas vezes, obrigava Leydianni a fingir. Ele, rotineiramente após seus fracassos, fugia da cama e corria para entrar na Internet no intuito de conversar com outras mulheres pela madrugada Jabhal se desesperava com os relatos de Leydianni. Ofereceu-se para ajudá-la. Ela disse que queria se entregar ao nosso herói, mas que estava com medo de seu noivo e não sabia das reais intenções do rapaz. Por isso, ela pediu uma prova de amor antes de se entregar. Uma confissão pública de afeto e trinta mil reais para pagar as dívidas deixadas pelo noivo em seu nome. Jabhal, movido por um misto de amor, culpa e compaixão, ofereceu tudo o que ela pedia.

Porém, depois de entregue o dinheiro, ela desapareceu. Jabhal, preocupado com seu paradeiro, tenta solicitar informações na universidade para encontrála. Inocente, imaginou que o noivo tinha descoberto as reais intenções dela e a castigou. Quando ele se apresentou na universidade, os seguranças da instituição o repreenderam. Leydianni, neste entretempo, fez reclamações na diretoria da faculdade contra as "perseguições" que o nosso herói estaria realizando. Disse que se sentia ameaçada, que iria trocar de universidade e proibiu a instituição de passar seus dados pessoais. Por sorte, um amigo de Jabhal, que trabalhava na secretaria, conseguiu o endereço dos pais dela na capital paulistana.
Jabhal deveria ir atrás de Leydianni e se vingar? Buscá-la para reaver o dinheiro e limpar seu nome e sua honra na universidade? Eis aqui o mote para o debate entre quatro importantes correntes do pensamento ocidental.



... não somos louvados ou censurados por causa de nossas emoções (um homem não é louvado por estar atemorizado ou colerizado, nem é censurado simplesmente por estar encolerizado, mas por estar encolerizado de certa maneira). (...)
Quando, porém, uma pessoa age [prejudicando outro] deliberadamente, ela é injusta e é moralmente deficiente. Por isto se considera com razão que os atos devidos à cólera não são premeditados com intenção criminosa, pois quem inicia a ação não é a pessoa que age sob o efeito da cólera, e sim aquela que encoleriza o agente. Aristóteles, Ética a Nicômacos


Vingança do virtuoso
Aristóteles, filósofo das virtudes, tem na justiça um especial apreço. O homem, em sua concepção, é um animal social dotado de logos (discurso, razão). Sua concepção finalista do universo faz crer que tudo o que existe está engajado numa ordem universal. Tudo serve para algo, ou seja, tem uma finalidade. Assim, a finalidade da árvore é resfriar o solo, disponibilizar madeira e, em algumas espécies, dar frutos. A finalidade da água é refrescar e nutrir os seres vivos. A finalidade da minhoca é preparar o solo para as plantações. Já o sol existe para esquentar e iluminar.

Ilustração de Hamlet, de William Shakespeare, por Edwin Austin Abbey. Trata-se de uma tragédia que gira em torno da vingança. O príncipe, ao descobrir que seu tio matou seu pai para casar-se com sua mãe e assumir o trono, finge-se de louco para conseguir vingar-se dele

Mas e o homem? Qual a finalidade dele? Qual o seu lugar natural? O homem é um animal complicado para os aristotélicos. Enquanto os demais seres vivos possuem instintos aguçados, que dizem como eles devem viver em qualquer situação, o homem não nasceu com tal capacidade. A única coisa que o diferencia dos demais é o logos, que lhe confere a liberdade de poder agir e viver de várias formas possíveis. Porém, o estagirita nos alerta para o fato de que seja qual for a vida que o homem escolha, ele só viverá bem na pólis. Na cidade, com os demais homens. Viver engajado na sociedade não basta para ser eudaimonico, feliz, é verdade. Porém, se coloca como condição essencial para desenvolver suas finalidades. Não é possível, em sua perspectiva, que os homens consigam conviver manifestando todo o seu potencial em uma sociedade sem regras ou sob a ameaça constante destas serem quebradas.

A reação colérica frente ao prejuízo deliberado de uma pessoa sobre a outra é vista por Aristóteles como emotiva e justificável. É compreensível e aceitável que Jabhal procure Leydianni para acertar contas. Ela o feriu deliberadamente no campo emocional, econômico e em sua honra ao difamá-lo na universidade. Por isso, uma eventual vingança tem como agente Leydianni por tê-lo prejudicado e não Jabhal, que executaria tal retaliação. A vingança é uma reação natural das capacidades morais.

A reação colérica frente ao prejuízo deliberado de uma pessoa sobre a outra é vista por Aristóteles como emotiva e justificável

Uma das mais antigas leis existentes, a lei de talião (do latim, significa tal ou igual), conhecida como "olho por olho, dente por dente", busca uma correspondência entre o mal causado e o castigo. Ela aparece no código de Hamurabi, documento da antiga Mesopotâmia

Sendo permitida a vingança em termos morais e jurídicos, cabe uma outra pergunta: deve Jabhal se vingar? A resposta aristotélica é sim. Sendo um homem virtuoso, ele não deve aceitar, sob nenhuma hipótese, a injustiça. Se a polícia e o direito não conseguem reparar os danos financeiros e da sua imagem, cabe ao nosso herói procurá-la no intuito de restituir o seu dano. Ele deve ser comedido, respeitador da lei, e por isso não pode matá-la, por exemplo. Mas cabe a ele achar a punição mais adequada.

Aristóteles vê a ira motivada por uma injustiça como algo positivo. Essencial para os homens virtuosos. O sábio jamais deve se aquietar frente ao ato injusto. O sentimento de ódio que ele cultiva frente ao mal é essencial para atemorizar todo aquele que pretende lhe causar um dano. Em certos aspectos, este sentimento colérico representa a marca da justiça incorporada nos homens bons. Leydianni, de acordo com os conceitos de Aristóteles, é mau-caráter. Ela não incorporou de maneira eficiente as virtudes morais para viver bem em sociedade e consigo mesma. Por isso, compromete a felicidade de todos. Não é a toa que os deuses costumavam se vingar de homens maus, mesmo que estes não tenham feito nada contra tais divindades. O justo não pode tolerar a injustiça.

O homem virtuoso deve ter coragem de tomar partido contra o injusto. A reação impulsionada pela moral deve ser guiada por um hábito que, quando afetado, reage. Buscar a justiça, mesmo que seja difícil, é um dever que se impõe, tanto pela razão quanto pela emoção incorporada. A ira que move a vingança, apesar de destrutiva e dolorosa, é essencial para mantermos relações felizes. Felicidade que não diz respeito somente a Jabhal, mas a todos os homens que se espelharão em tal ação ou que temerão as possíveis reações vingativas que podem surgir de uma ação má.



Platão, Sêneca e Aristóteles em ilustração de um manuscrito medieval. Sêneca condena, em todas as situações, a vingança. Segundo ele, a ira presente na vingança deve ser evitada porque quem a sente tem a felicidade abalada

Reprovação do estoico
Para os estoicos, a boa vida tem como finalidade um estado de ataraxia. Este termo designa tanto uma tranquilidade corporal quanto da alma. Um homem deve levar uma vida que não comprometa o bom funcionamento do seu corpo bem como não perturbe seu espírito com ansiedades, angústias, medos, culpas etc. Afinal, como uma pessoa pode viver bem sentindo dores pelo corpo e inquieta com preocupações?
Segundo os estoicos, para que a natureza garantisse a nossa felicidade, ela nos ofereceu um valioso instrumento: a razão. Apesar das muitas diferenças em relação aos aristotélicos, os estoicos concordam que a razão (logos) é parte fundamental para se viver uma vida boa. Para Zenão e seus discípulos, a razão tem como função nos defender das agressões físicas e psíquicas. Sendo a natureza e os demais homens potencialmente ameaçadores da alegria e da vida cabe à razão evitar encontros tristes com o mundo. A razão serve para termos consciência da realidade, evitando que os homens se coloquem em perigo.


















Vingança de Herodias, por Juan De Flandes (1496).Herodias, que não gostava de João Batista, convenceu sua filha Salomé a pedir ao rei Herodes de Antipas - que havia prometido a ela o presente que quisesse - a cabeça dele

Na concepção estoica, o homem é um ser natural como qualquer outro. Por isso, deve aprender com a natureza como viver bem e se ordenar no cosmos. Os animais possuem uma vida simples, sem luxos ou preocupações com o passado ou com o futuro. Gozam a vida no momento, sabem aproveitar o melhor do instante bem vivido com cautela, sem exageros, protegendose instintivamente quando são ameaçados. Assim também deve ser a vida dos homens. Tranquila, simples, sem a busca de objetivos desnecessários a vida, sabendo viver o instante e evitando dores físicas, arrependimentos e frustrações.
Entre estes pensadores, o que melhor refletiu sobre a vingança foi o neoestoico Lúcio Sêneca. Preocupado com o comportamento belicoso dos homens de seu tempo, começou a refletir sobre todos os sentimentos destrutivos que levam os homens à tristeza. Entre eles, dedicou-se à ira. Sua origem, como ele bem observa, está na esperança, na capacidade humana de ter expectativas irreais sobre o mundo, em um conflito entre um mundo desejado e o mundo que se apresenta.


Para Sêneca, qualquer tipo de vingança é condenável. Inclusive a de Jabhal. O filósofo diria que nosso herói não foi sábio e por isso sofre. Sua ira poderia ser evitada. Por isso, ele não tem o direito de descontar sua raiva nela.
Poderíamos perguntar a Sêneca: "- Não existia a possibilidade de Leydianni falar a verdade e se mostrar uma pessoa boa? Não valeria, se fosse verdade, correr o risco?" Ele concordaria com a primeira pergunta, mas não com a segunda. Imaginemos, hipoteticamente, que Leydianni fosse sincera. A pergunta que um sábio se faria é a seguinte: seria uma boa ideia se relacionar com uma mulher como Leydianni? Que futuro promissor se poderia ter ao lado de uma mulher que, quando insatisfeita com a relação, seduz outros homens desmoralizando o companheiro? O que lhe garantiria não ter o mesmo destino daquele noivo? Mesmo se a história fosse outra, Jabhal não viveria tranquilo. Sofreria no decorrer da relação. Sendo boa ou má, ela é desequilibrada em relação ao cosmos. Seria, independente de sua escolha, infeliz. Por esses motivos, os animais não se vingam. Agem somente para sobreviver. E assim deve ser a vida do homem. Extirpando de si comportamentos não naturais.

Mas se alguém agir premeditadamente contra o seu próximo, matando-o à traição, tirá-lo-ás do meu altar, para que morra. O que ferir a seu pai, ou a sua mãe, certamente será morto. E quem raptar um homem, e o vender, ou for achado na sua mão, certamente será morto. (...) Mas se houver morte, então darás vida por vida. Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.
Êxodo, 21:14-25



Vingança na religião
A orientação judaica sobre a ação de vingança é, em muitos pontos, parecida com a de Aristóteles. A vingança é justa, sendo condição de respeito às normas. Porém, a fundamentação é diferente. Para o estagirita, a vingança é um sentimento que provém de uma infração ao modo de conduta que afeta, em última instância, a felicidade individual e coletiva. Na Torá (que em hebraico significa ''lei''), a fundamentação da vingança não está no bemestar da coletividade, mas na infração da lei em si mesma. O fundamento moral judaico não fundamenta na alteridade, no respeito ao outro, mas na obediência à vontade de Deus. É o divino, manifestado Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra e, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa. Se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. (...) Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem. Mateus 5:39-45 através de Moisés no Monte Sinai, que revelou aos hebreus suas normas adequadas de conduta.

Logo após revelar os mandamentos fundamentais, chamado pelos cristãos de Dez Mandamentos, Deus instruiu o povo hebreu sobre a condenação aos infratores segundo a lei de talião: olho por olho, dente por dente. A punição ao injusto que lesa a vítima não é regida pelo direito da vítima, como imagina o senso comum, mas pela infração aos mandamentos do próprio Deus. A vingança só pode ser operada pelos justos, os obedientes a Deus, a quem a divindade delega esse poder.

A punição ao injusto que lesa a vítima não é regida pelo direito da vítima mas pela infração aos mandamentos de Deus

Não está em jogo a felicidade da vítima ou do povo, afinal, a vida terrena advém de um castigo essencialmente infeliz do pecado no Jardim do Éden (que em hebraico significa ''jardim das delícias'' ou ''dos prazeres''), da felicidade eterna do qual o homem justo e temente a Deus pretende alcançar (por sinal este nome é parecido com o lugar terreno criado pelo filósofo grego Epicuro, materialista e não teólogo).
Leydianni, ao infringir os mandamentos religiosos de não mentir, não roubar e de não levantar falso testemunho, contraria a vontade de Deus. Se Jabhal fosse um judeu típico, teria que buscar a vingança por motivos sagrados e não pessoais. Deveria consultar os religiosos para saber como ele deveria proceder. Problema complexo. Afinal, olho por olho, pé por pé, é uma medida fácil. Mas e quando o estrago é difícil de se medir, como a honra de uma pessoa?

Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra e, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa. Se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. (...) Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem. Mateus 5:39-45


Mas nossa perspectiva religiosa pode ser outra. Muito parecida com o judaísmo, mas não igual. Os cristãos, aqueles que professam sua fé em Jesus Cristo como filho de Deus, messias, cordeiro sacrificado para redenção dos pecados do mundo, possuem outra perspectiva da vingança. A mensagem principal do pensamento cristão não é a busca pela justiça divina, como ocorre no judaísmo e no islã, mas a manifestação do amor de Deus pelos homens. Pelo sofrimento e morte do Cristo, que é a própria divindade encarnada, somos salvos dos nossos pecados e habilitados a morar novamente no paraíso. Em seu novo testamento, Deus se preocupa mais com a redenção do que com a punição dos nossos desvios.



Jesus Cristo, arauto da nova fé, se faz claro ao afirmar que, quem quiser alcançar o perdão de Deus e habitar o paraíso, deve ser capaz de perdoar todo aquele que lhe fizer mal. A lei mosaica diz que o justo deve punir o injusto, que o servo obediente deve punir o pecador. Porém, quem teria condições morais suficientes para levar a cabo a justiça de Deus e condenar o seu próximo? Que homem, além do Cristo, é tão puro e correto que possa colocar em prática a justiça de Deus? Segundo as normas bíblicas, ninguém. Todos cometemos deslizes e buscamos o perdão. Deus é o único ser inteiramente justo capaz de se vingar. Se Ele, no alto de sua justiça e glória, se faz humilde ao nos perdoar, porque então nós, que somos menos perfeitos, não somos capazes de fazer o mesmo?

Um ponto que une ambas as religiões é a afirmação de que a felicidade não está neste mundo. Desde o início da Bíblia, com o Gênesis, até o último livro, o Apocalipse, a vida na Terra é apresentada como um castigo. Um estado de punição pelo pecado. Vingar-se ou não é uma questão para uma felicidade além do mundo, sem ter relações com a vida presente. A esperança no futuro é o que distingue Cristo de Sêneca no tocante ao tema.



Movimentos psíquicos

A perspectiva psicanalítica sobre a vingança é bem rica. Proporciona outros olhares e perspectivas complementares ao pensamento filosófico sobre este assunto. Leydianni, numa perspectiva psíquica, é uma típica representante da personalidade perversa. Ela é sedutora, mentirosa, manipuladora e possui um traço que a distingue, por exemplo, de uma pessoa histérica: ela utiliza o outro como seu objeto. Sem se importar com seus sentimentos ou sentir culpa por isso. Leydianni "vampiriza" Jabhal utilizando-se da sedução e da mentira para obter dele favores acadêmicos e dinheiro. Teatraliza, sem sentir remorsos, no intuito de usar nosso herói. Ela arquiteta situações que deixam Jabhal cheio de desejo, culpa, desespero e utiliza do seu sentimento de compaixão para conseguir o que quer. Como toda perversa, ela tira proveito da situação de sofrimento e constrangimento em que coloca Jabhal e a universidade. Locomove-se pela inveja e pela destruição. Aproveita a tristeza alheia em benefício próprio.

É comum encontrar pessoas que são sobrecarregadas por um sentimento de culpa e na verdade bloqueadas por ele. Elas o carregam como uma carga nas costas como a dos cristãos no Pilgrim´s Progress. Nós sabemos que estas pessoas têm um potencial esforço construtivo. (...) Podemos estudar esses excessos do sentimento de culpa em indivíduos que passam por normais, e que na verdade estão entre os membros mais valiosos da sociedade. (...) Sem dúvida, em parte das pessoas há uma falta de capacidade em sentir culpa. (...) Não é raro encontrar indivíduos que tiveram um desenvolvimento sadio apenas em parte, e que em parte são incapazes de atingir real preocupação, sentimento de culpa ou remorso. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação



O perverso, ao contrário do padrão neurótico, não passou pelo doloroso sentimento de temer a castração edipiana. Ao contrário da normalidade, o perverso não aceita a Lei e as normas socialmente compartilhadas. Ele se apega em seu narcisismo, em sua devoção por si mesmo, e constitui para si uma lógica moral egocêntrica. Por isso, não se preocupa com o outro. Seu aparente sentimento de arrependimento, seu sofrimento, não se constitui na culpa pelo que fez, mas na ferida narcísica em falhar. Leydianni faz o que faz sem dificuldades. Um eventual choro pode ser uma teatralização ou ter origem na simples constatação de que ela não pode fazer tudo o que acreditava ser capaz de fazer. Acumula sentimentos primitivos de culpas imperdoáveis. Sente inveja, raiva e desprezo pela possibilidade das pessoas serem felizes. Sentimento esse que ela nunca poderá sentir satisfatoriamente.

Jabhal, por outro lado, é um típico neurótico. Sua principal característica é se sentir incomodado por recorrentes sentimentos de culpa. Sintoma que revela o triunfo excessivo da rigidez moral sobre os desejos. Este sentimento de culpa advém da percepção consciente e inconsciente de impulsos condenados pela lei moral.
Narciso, na mitologia um admirador da própria beleza. O narcisista tem uma lógica moral egocêntrica e não se arrepende por seus atos cruéis ou sente culpa pelo que fez




Nosso herói se sente culpado por desejar uma mulher que era noiva por fraudar o processo acadêmico para ajudála. Inconscientemente, ele se preocupa com possíveis retaliações do noivo sobre Leydianni e absorve os sentimentos de culpa que ela deveria sentir. Sente-se culpado pelas agressões e descasos do noivo, afinal, inconscientemente, há uma identificação com ele. Sem perceber, Jabhal gostaria de maltratar Leydianni, em fantasia, toda vez que ela frustrava seu desejo. Todo esse sentimento de culpa só encontrou alívio com uma punição movida pelo inconsciente. Uma autossabotagem, concretizada pelo golpe financeiro e em sua honra. Pessoas com problemas iguais ao de Jabhal são prezas fáceis para perversos como Leydianni. Não somente no campo acadêmico, mas também no familiar e profissional. A inúmeros golpistas que usaram da sedução para conseguir uma gravidez "indesejada", tirar proveito no trabalho, chantagear o chefe ou mesmo criar situações de constrangimento a empresa. Apesar da história fictícia, não estamos tão distantes do que acontece na realidade.



A objetivo da vingança é, em essência, fazer com que a pessoa que prejudicou passe pela mesma situação de dor da vítima

O retorno do filho Pródigo, de Rembrandt (1668). A parábola conta a história de um filho arrependido que volta a procurar o pai e é perdoado. Para o cristianismo, a redenção é mais valiosa do que a punição pelos erros

O desejo de vingança que consome Jabhal é muito forte. Afinal, ele deu o seu melhor para ajudá-la e, em contrapartida, foi lesado. Do ponto de vista psíquico o que se busca, na vingança, não é a tentativa de solucionar um dano sofrido. Uma busca pessoal para restaurar o status quo antes do golpe. O objetivo da vingança é, em essência, fazer com que a pessoa que prejudicou passe pela mesma situação de dor da vítima. A vingança se baseia em um fundamento arcaico do inconsciente moralizado: não faça comigo o que você não gostaria que fizessem com você. Sua mensagem é essencialmente um apelo de humanidade: quero que você saiba o quanto me machucou e que aprenda, com essa vingança, a se arrepender e que nunca mais repita esta atitude com outras pessoas. Por isso, apesar dos males que causa, muitas culturas atribuem a vingança um valor moral positivo.

Muitos, obviamente, se questionam sobre a sugestão psicanalítica para a vingança. A resposta é simples, não há. Aqui, Filosofia e Psicanálise se aproximam quando constatam que não é fácil viver. De que não existem respostas prontas ou universais para todos os casos. Por isso, os conselhos geralmente são ruins e desnecessários. O único convite que ambos sugerem é o de refletir melhor sobre a vida que se leva. Sobre as decisões a se tomar. Pensar sobre nossas tristezas e possibilidades de alegria. Com ou sem vingança. Questão genuinamente filosófica sobre a vida que vale a pena ser vivida.



Este é um texto especial baseado nas reflexões do livro A vida que vale a pena ser vivida, dos autores Arthur Meucci e Clóvis de Barros Filho, que será lançado, em maio, pela Editora Vozes.

Um famoso ditado popular diz ser a vingança um prato que se serve frio, ou seja, ela será mais eficiente quando bem planejada e executada na hora mais apropriada. Outra interpretação é de que a vingança não deve ser cometida imediatamente para que não se faça bobagens, movido pelo calor do momento
Um famoso ditado popular diz ser a vingança um prato que se serve frio, ou seja, ela será mais eficiente quando bem planejada e executada na hora mais apropriada. Outra interpretação é de que a vingança não deve ser cometida imediatamente para que não se faça bobagens, movido pelo calor do momento


Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: Ed. UNB, 2001
SENÊCA. De la colera (Da ira). Madrid: Alianza, 1986
WINNICOTT, Donald. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed, 1983




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